Texto apresentado em 28 de Maio de 2025 na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Em Cada um por si e o Brasil contra todos, publicado no início de 2025 pelo selo Peixe Elétrico Ensaios, na editora e-galáxia, Felipe Catalani compila e tece o fio que atravessa sua produção ensaística entre 2018 e 2023. A princípio, estamos diante de ensaios dispersos, alguns de intervenção quase jornalística, outros de especulação filosófica. O público já os conhecia. Sua reunião lhes confere, porém, uma rara sistematicidade e lhes faz sobressair a acuidade. Relendo os textos na ordem apresentada, ressalta, em seu fundo, uma teoria complexa da crise terminal e do colapso do capital enquanto processo prolongado de estertoração. A consciência do caráter derradeiro, imanente e necessário dessa crise impede, consequentemente, o autor de assumir qualquer prospecto de resolução progressista ou que se valha dos pressupostos da velha esquerda trabalhista em sentido amplo. Isso dá ao autor ferramentas muito poderosas para captar no calor da hora a novidade do tempo, herdando a tarefa do 18 Brumário. Em certo sentido, é como se Catalani tivesse visto chegar o que ele já previa, quando Bolsonaro bate na porta ainda antes do resultado das eleições. Catalani sabe que as categorias tradicionais do progresso e do trabalho não pegam mais a coisa. A “novidade” Bolsonaro, porém, não o surpreende. Em certo sentido, o bolsonarismo, que emerge justamente no momento em que o autor começa seu doutorado, desperta nele a cultivada vocação para os ensaios filosóficos de intervenção no presente, e é justo que o brilhante ensaio sobre o bolsonarismo abra o livro, não apenas em razão da ordem cronológica. O gênero do ensaio filosófico sobre a matéria histórica presente não foi inventado pelo autor. Ao contrário, ele se filia, com essa que pode ser considerada a sua thèse complémentaire, escrita ao lado de outra, igualmente brilhante, sobre Günther Anders, à tradição crítica uspiana, atualizando-a de maneira original e à altura dos seus “avôs” e “pais”, como solução para o problema ele mesmo filosófico de como fazer filosofia no Brasil e depois do fim da própria filosofia.
A análises filosóficas do presente, essa mistura de metafísica e jornalismo, não possibilitam a Catalani apenas ver com mais agudeza o que os jornais relatam, mas também, às vezes, passar em revista a própria metafísica, inclusive em seus momentos mais etéreos e teodicéicos, como na especulação sobre a essência do mal. Não apenas as categorias de pensamento permitem a Catalani entender o mundo, mas o mundo lhe entrega a historicidade dessas categorias. O singular ensaio sobre a desbanalização do mal merece destaque aqui. Se a tese da banalidade do mal de Arendt já fazia exatamente isto, historicizar o pensamento moral diante de um limite em que a própria ação moral parece impossível, o autor atualiza a tese e enxerga no nosso estágio terminal de desintegração social a novidade de uma desbanalização do mal. À velha tese socrática de que ninguém que conhece o bem pode fazer o mal, Catalani opõe a sacada de que, neste momento histórico absolutamente excêntrico, não apenas é possível fazer o mal intencionalmente, mas que hoje o mal se executa sem a necessidade de qualquer fator excusante, sem se ocultar por detrás de nada que sequer se assemelhe ao bem. A banalidade era a forma como o mal se executava como trabalho, portanto, neutralizado eticamente, pois o trabalho é ao mesmo tempo um dever e uma necessidade. No mundo sem trabalho ou, dito de modo mais moderado, no mundo em que o trabalho perde a capacidade integrativa, ao mal banal do trabalho sujo se une o mal “consciente de si”, a crueldade conscientemente executada que dá a única suposta saída visível para sair da posição universalizada de vítima. Num mundo de vítimas reais da concorrência absolutamente selvagem pela sobrevivência, enquanto alguns buscam compensação libidinal reconhecendo-se a si mesmos como vítimas de algum opressor abstrato e imaginário, outros o fazem reconhecendo-se, também imaginariamente, como sendo os próprios opressores cruéis. Apenas quem faz vítimas pode evitar se reconhecer como uma.
A desbanalização, no entanto, não é um retorno ao que havia antes da banalização. Com o risco de vulgarizar o argumento, esquematizo: se antes o mal era vivido como mal, ou seja, como algo que não deve ser feito; e, depois, com a banalidade, o mal, embora mal, era todavia “liberado”, já que seu agente era absolvido pela necessidade de realizar o dever do trabalho; agora, o mal, vivido pelo seu agente enquanto mal, é, todavia, afirmado. Não é banal como no primeiro momento, mas é universal como no segundo. Em outras palavras, de início, o mal era excepcional; a seguir, o mal perde a excepcionalidade, se torna regra; até que, enfim, ele é regra e exceção ao mesmo tempo, exceção como regra.
Quando eu disse que Catalani estava bem preparado teoricamente e esperando a vinda do Jair Messias, o que eu queria dizer era que seu “treinamento em dialética” o deixava pronto para enxergar a continuidade do movimento complexo da dinâmica de autodissolução da superestrutura capitalista. Ele sabia que o que estava acontecendo era algo novo, mas que esse novo era a continuidade do velho. Não serviam, portanto, as mesmas categorias estáticas da esquerda progressista, mas se tratava de apreender a dinâmica capitalista enquanto processo negativo de autodestruição. As categorias antigas, digamos, “fascismo”, pegavam e não pegavam o que estava acontecendo. Não pegavam, porque não estávamos mais naquele segundo momento do argumento sobre a banalidade, muito menos no primeiro. Pegavam, por outro lado, quando o que aprendemos com ela é a sua lógica, e não a sua descrição estática.
O texto que assino junto com o autor, “A Exceção pensada”, ilustra o que quero dizer. Conto brevemente sobre a origem do texto. Possivelmente em razão de nosso outro texto em coautoria, sobre dualidade e desintegração em Paulo Arantes e Roberto Schwarz, fomos convidados a apresentar algo num formato mais sintético na edição da Cult dedicada ao Paulo. Na ocasião, estudávamos juntos em um grupo de estudos online com outras e outros camaradas a obra de Carl Schmitt, seguindo a intuição de Kervégan de que há um dialético abafado na obra desse pensador da contrainsurgência – afinal, é preciso estar diante da evidência conceitual da revolução para colocar o pensamento a serviço de sua evitação. A ideia de exceção, que também cumpria um papel-chave nos mais recentes trabalhos de Paulo Arantes, nos parecia absolutamente dialética, um exemplo didático de síntese contraditória, capaz de apreender algo daquele terceiro momento que Catalani chamou de desbanalização. Em um outro texto com o qual eu também reagia ao impacto da vinda do Jair Messias, eu havia tentado pensar como a forma jurídica (em termos Pashukanianos) e, com ela, o Estado de Direito, se corroíam por dentro como que necessariamente até uma situação-limite em que vigora um direito que perdeu toda a sua “forma” e virou pura exceção. A exceção, o outro do direito, que Schmitt mostrava que estava lá “virtualmente” no direito posto, vira o próprio direito, não o fantasma que o assombra no fundo, mas a sua “atualidade”, sua “efetividade”, sua “carne”, o que obviamente não faz nenhum sentido, mas que infelizmente não a impede de ser. Essa dialética da exceção e da norma, Catalani a viu, com Paulo Arantes, ou, no fundo, com Antonio Candido, na estrutura da nossa formação econômico-social, estando lá desde o começo. É mais um exemplo de como certas figuras avançadas da dialética desintegradora do capital já nos eram familiares muito antes da sua hora e vez. Por isso mesmo, porque já a tínhamos, já sabíamos que essa figura de elevadíssima tensão dialética não se resolve em nada produtivo.
Uma consequência prática das constatações de Catalani, portanto, é uma reavaliação do sentido do “trabalhador” para a práxis política. Enquanto a esquerda tradicional, que não abandona suas desfocadas lentes, sonha ainda com CLT e sindicato, com um portador “orgânico” e “produtivo” da emancipação (ou, se a gente quiser, um cliente espontâneo para políticas públicas), Catalani aposta, no livro, na práxis do “inorgânico”. Comparemos essa aposta política nos “viradores” de toda espécie, da economia de plataforma, dos MEIs, dos empreendedores de não mais que a própria força de trabalho, com, por exemplo, a aposta dos movimentos de moradia. Alguém poderia sustentar que seria um equívoco investir politicamente nesses que estou chamando de “inorgânicos” – de fato, os trabalhadores da esfera da circulação –, pois eles são estruturalmente reacionários, ao passo que, por exemplo, a luta por moradia poderia constituir uma massa organizada e útil politicamente. Não preciso explicar que este é o ponto de vista de quem busca clientes para políticas públicas, no limite, populações a serem administradas. Catalani está atrás, aqui, de uma espécie de potencial de reviravolta da consciência dos grupos inorgânicos, no fundo os únicos que entendem – de que forma seja, mas sempre espontaneamente, como um sentimento – que a forma atual de estruturação social esgotou-se e que não há mais futuro. Entre a consciência administradora da destruição lenta, gradual e segura, que denega o fim, e a consciência cínica e cruel que busca o fim aqui e agora, é na última que Catalani ainda enxerga alguma possibilidade de “interversão”. No fim, não querer ser uma vítima ainda é, para o autor, algo que guarda mais potenciais do que querer ser uma.
Por isso, Catalani quer ver a “Exceção” dar lugar à verdadeira exceção, a Barbárie dar lugar a uma verdadeira invasão bárbara. Enquanto os progressistas estão vendo nos desdobramentos críticos dos últimos anos um “acidente” de percurso e procurando na superfície dos fenômenos causas para o desvio do progresso, Catalani está atrás do verdadeiro “Acidente” que pare a máquina.

Luiz Philipe de Caux
Luiz Philipe de Caux é professor de filosofia da UFRRJ e autor de A imanência da crítica (Loyola, 2021).