MAID é uma série “sensível”. Digamos, de início, que este não é um mérito banal, sobretudo por se tratar de uma série comercial que há semanas está no topo entre as séries mais assistidas da Netflix. Após uma onda de apocalipses zumbi, tragédias biológicas vividas em grupo por profissionais da saúde, impérios nórdicos e (por que não?) séries de assassinatos e jogos maníacos, MAID ganha popularidade em ritmo acelerado, sem se atrelar à espetacularização da vida. Aliás, ao lado do seriado que tem uma faxineira terceirizada como protagonista, disputa a atenção do público a série Round 6, que só cabe mencionar como critério comparativo da mobilização do imaginário diante das telas. Isto posto, ser sensível não basta.
Em sobrevoo e com poucas revelações, pode-se dizer que a trama de Maid se constrói a partir da violência doméstica pela qual passa a personagem central, Alex, mãe em período integral, que vive isolada socialmente com o namorado, Sean, e a filha do casal, Maddy. Ao tentar fugir de casa, Alex se vê sozinha e sem dinheiro, com uma filha de dois anos nas ruas de uma cidade do interior dos EUA. A mãe de Alex, Paula, [1] com destaque para a atuação brilhante de Andie MacDowell é uma pessoa excêntrica, para dizer o mínimo e respeitar a complexidade da personagem. Paula não pode ajudar Alex, o pai tampouco. Ao encontrar amparo na quase extinguida assistência social norte-americana, Alex é encaminhada para um emprego precário como faxineira de uma empresa chamada Value Maids, que apesar de não ter um regime de plataforma, tem condições de trabalho semelhantes aos aplicativos de serviços que aos poucos vão se tornando a regra do mundo do trabalho contemporâneo. Também nisso, a série é atualíssima. A assistência social e o gerenciamento das mulheres vítimas de violência doméstica tem destaque grande na série, destaque positivo, a propósito, sendo pontualmente problematizado através das inúmeras burocracias, formulários e provas para que se possa comer, dormir e respirar. Um termo histórico nos EUA repercute ao longo da aproximação entre Alex e o “amparo governamental”: white trash, literalmente, lixo branco. Até onde consta, o termo tem origem no sul dos EUA, por volta de 1830, sendo comumente usado pela aristocracia local para se referir aos trabalhadores, camponeses, imigrantes, em suma, aos pobres. Algo que localiza essa parcela da população ao lado dos escravos, dando o tom de uma população descartável. [2]Claro que o assunto é muito delicado e merece nuances históricas firmes, como a representação do negro no cinema norte-americano e o ódio racializado que toma conta daquele país até hoje. Para … Continue reading Não se trata de uma coincidência, digamos, que Alex tenha duas patroas não-brancas, a primeira, Yolanda, imigrante mexicana que gerencia a empresa Value Maid e está sempre despachando possíveis cobradores de dívidas, bem como agenciando ex detentas e mulheres violentadas; a segunda, Regina, uma advogada negra bem sucedida, que paga um preço alto por ter priorizado sua autonomia financeira à maternidade. Há de se questionar, então, se esta inversão de lugares privilegiados foi um acerto da direção, pois negligenciar a racialização nos EUA não só é impossível, como reduz o debate político à estaca zero. É possível que este seja o primeiro ponto fraco da série [3]Para a atualização do debate, ver “A democracia da abolição” de Angela Y. Davis, onde a autora reorienta a discussão para as condições sociais da população não-branca dos EUA tendo em … Continue reading , embora não seja o suficiente para descartar as impressões contraditórias (e por isso dignas de nota) de todo o enredo. O centro do conflito da série está entre a maternidade e a violência doméstica, ao menos, o centro mais aparente. Aqui nos deteremos em avaliar como a condição da mulher-mãe descartável, [4]Outro termo adequado ao problema seria “Mulheres dos escombros”, o termo é utilizado por Robert Kurz em uma breve intervenção sobre a condição das mulheres na sociedade da crise pós anos … Continue reading representada na série não só por Alex, revela certo movimento típico do esgotamento da “sociedade prestadora de serviços” ou ainda do “Estado caritativo” pós welfare state.
Embora o eixo da série esteja na violência doméstica contra mulheres, sobretudo, mulheres mães, que são arrancadas do mercado de trabalho para retomar os cuidados com as crianças em casa (já que as creches não são tão fáceis de conseguir e aqui no Brasil, por exemplo, só estão dispostas a acolher bebês em período integral, sem se basear na necessidade real de cada família), o circuito de violência é geral: o fracasso financeiro dos pais e a negligência com a infância por inúmeros problemas “familiares” dão o tom de desespero incessante à série. Não há por onde fugir. Este é outro mérito de Maid, não há uma demonização das personagens, uma unilateralidade entre agressor e agredido, há algo por trás das relações privadas que mantém em marcha os ciclos de violência. Para dar ritmo à dinâmica aflitiva do conteúdo da série, ela é filmada como um thriller, que pode ser caracterizado como psicológico, caso queiram, mas justamente por ser parte de um catálogo para streaming, algo do terror cotidiano chega muito próximo da ficcionalização do horror, quando esta conta com uma gama de personagens sobrenaturais e espaços fantásticos para abrandar o drama do mundo. Não é uma metáfora, portanto, mas é claramente uma ficção. O exagero das situações arquetípicas como o caso da mãe de Alex, da patroa Regina, de Danielle ou do garoto que foi trancado no sótão pela mãe antes de se tornar um assassino, vão moldando a malha desconcertante da série. Não por acaso a atriz Margaret Qualley mantém os olhos da personagem sempre arregalados: se a realidade não choca e conformou a todos, o inconformismo de Alex ressoa no público, onde a permanência da angústia, através do exagero das situações, dá o clima de perigo iminente ininterrupto. Ao que tudo indica, na Era das Redes Sociais, salvaguardada pela derradeira Era Atômica, onde saber de uma mulher morta se tornou irrelevante, bem como saber de 605 mil corpos abatidos por um vírus em menos de dois anos também comove pouco [5]Para mais ver Barbárie: compartilhar, de Silvia Viana. Disponível em https://diplomatique.org.br/barbarie-compartilhar/. , a mobilização do espanto só pode ser um acerto da ficção: Alex nos revela que estamos habituados demais com o horror para nos livrar dele. Novamente, é uma série para o grande público, que peca, certamente, em inúmeros clichês e aponta para soluções conciliatórias, mas o que faz sentir na série, o que mexe com nossa apatia pessoal e social, merece destaque.
Paula talvez seja um dos exemplos mais intensos da degradação geracional, como uma personagem tipo: com o figurino que nos remete aos casacos de Janis Joplin, junto de sua aptidão artística pouco confiável, Paula se alienou no discurso da geração de 68, entre a paz, o amor livre e os negócios autônomos (que agora não passam de alugar casas próprias para a airbnb e ficar temporariamente desabrigado). O tempo de Paula é o tempo da negação da vida adulta, como alguém que se mantém presa ao que era antes da maternidade, mas não por desafeto, não por descompromisso, mas por ser a maneira mais viável de lidar com os traumas da violência doméstica e da dissolução de sua família. Não temos acesso algum ao que Paula foi antes de Alex, a não ser por sua imaturidade permanente, de alguém que ainda precisa de um espaço enquanto filha, sendo cuidada por Alex desde que essa tinha seis anos e ambas fugiram para o Alasca. A vida não é mais branda com os agressores, embora seu privilégio masculino (que só pode ser um privilégio porque todo o resto é um horror deplorável, já que se ganha muito pouco com eles) em ter amparo familiar e salarial (assustador que tenhamos chegado ao tempo em que ser um assalariado se tornou um privilégio, isso para não mencionar o debate com o feminismo que exige seu lugar ao sol na cadeia de exploração, voltando-se contra o sintoma proletário masculino e nunca contra o trabalho [6]Sobre o assunto ver “O Calibã e a Bruxa” de Silvia Federici, seguido de “Cristóvão Colombo Forever”, de Roswitha Scholz, com destaque ao artigo “O valor é o homem”, da mesma … Continue reading ), há um recorte objetivo na série: todos estes agressores foram crianças traumatizadas. O beco, portanto, é sem saída. Se há uma síntese para o argumento do seriado, esta síntese é sem dúvidas o sofrimento. A elaboração do sofrimento social no processo de decadência do sistema capitalista merece um trabalho à parte. Porém, em nossa falta de horizonte, fica nítida a emergência do assunto: em filmes recentes, que tiveram bilheteria considerável, a mobilização da angústia e do sem saída para os pobres é frequentemente o tema. Para a comparação, basta pensar em Você não estava aqui (2019), de Ken Loach ou em O parasita (2019), de Bong Joon-ho, que, como longas de diretores já reconhecidos, não dão abertura para a conciliação, lá o trabalho estético com a matéria local apenas constata o eterno labirinto beckettiano da sociedade pós-industrial sem a garantia de direitos civis. [7]Para um desenho mais claro do que seria essa sociedade pós-industrial, privada de direitos civis, ver “Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos”, de Loïc Wacquant. Alex, para além da aparente violência privada, é uma vítima da violência pública e calamitosa do esgotamento do welfare state, esse é ponto decisivo dentro da figuração da crise norte americana e do drama individual da personagem na série, algo como dizer que este ponto é um princípio válido de generalização [8]O termo é de António Candido em Dialética da malandragem. , que dá força tanto à economia da obra, quanto à interpretação da realidade.
Infelizmente, a realidade se mantém mais espantosa que a ficção. O final de MAID não só é caricatura do happyend como suspende um dos problemas mais decisivos para a personagem após se libertar de seu relacionamento abusivo: Alex, ao exigir a resolução rápida da guarda de Maddy para ir à universidade, diz para a advogada que não pode desistir agora de sair do estado, pois ela realizou um empréstimo estudantil de nove mil dólares [9]Ver Suicídio paira sobre estudantes norte americanos endividados. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/05/06/suicidio-paira-sobre-estudantes-endividados-nos-eua.htm, ou … Continue reading , que deverá ser pago nos próximos quatro anos de sua formação. Esta seria uma informação banal, caso o grande público não estivesse à beira do colapso financeiro por esses empréstimos, inaugurando novamente um novo ciclo de tragédias individuais. Se MAID fortalece a indignação diante da violência privada, o ódio contra o problema real da desestabilização das mulheres mães de crianças pequenas, pobres e vítimas de violência doméstica, fica para segundo plano. Não há Estado que nos salve, não há suspensão da dificuldade pelo clichê do assistencialismo burocratizado. No final, a sensibilidade da série é revertida em sentimentalismo e superação pessoal, dando a entender que o drama só pode mesmo ser superado nos contos de fadas americanos. A punição quando revertida ao indivíduo se torna apenas manutenção ideológica da justiça contra os pobres, e a não demonização pessoal em MAID pode revelar, contraditoriamente, seu déficit: não, não se trata de culpar o pai ou a masculinidade, trata-se de perseguir a origem do problema dos gêneros e nele permanecer, para que a sensibilização não ecoe como mais um dos pilares da guerra de todos contra todos. O encerramento da caridade estatal por parte de seus fundadores é um horizonte que se desenha para todos os países, sem possibilidade democrática de regeneração [10]Ao que consta, o governo Reagan contou com apoio dos democratas para o corte de verbas sociais, como se isso não bastasse, um governador republicano de Wiscosin, eleito em 1992, ao implementar … Continue reading . E é aqui onde MAID não chega e retorna à condição de seriado norte-americano mediano, apesar de seu empenho em retratar o trabalho uberizado de uma mãe violentada nos escombros do colapso civilizatório da modernidade.
↑1 | com destaque para a atuação brilhante de Andie MacDowell |
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↑2 | Claro que o assunto é muito delicado e merece nuances históricas firmes, como a representação do negro no cinema norte-americano e o ódio racializado que toma conta daquele país até hoje. Para o assunto ver DU BOIS, W.E.B Black Reconstruction in America . Nova York : Henry Holt , 1935. Contudo, o termo parece frisar certo elo de violência entre essas pessoas. Uma violência histórica, demarcada pela lógica da acumulação e pela transformação da maior parcela da humanidade em lixo, nada mais, nada menos. Há notícias de que o termo havia caído em desuso com o Welfare State, tendo sido retomado pelo imaginário financeiro nas últimas décadas. Ver https://www.publico.pt/2016/11/13/mundo/noticia/white-trash-ou-a-pobreza-enquanto-tradicao-americana-1750642 |
↑3 | Para a atualização do debate, ver “A democracia da abolição” de Angela Y. Davis, onde a autora reorienta a discussão para as condições sociais da população não-branca dos EUA tendo em vista o Estado Penal Racializado do país, ao mesmo passo que reitera os inúmeros problemas da chegada dos negros ao poder do império capitalista. Ver também Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA, Loic Wacquant. |
↑4 | Outro termo adequado ao problema seria “Mulheres dos escombros”, o termo é utilizado por Robert Kurz em uma breve intervenção sobre a condição das mulheres na sociedade da crise pós anos 90. O texto pode ser lido aqui http://www.obeco-online.org/rkurz189.htm. Para um aprofundamento da caracterização dos déficits sociais entre mulheres ver Mulheres dos escombros: a condição das mulheres periféricas em tempos de catástrofe. de Scheilla Nunes Gonçalves. Ed. Revan, 2020. Rio de Janeiro. De novo, Wacquant: “Os Estados Unidos é o protótipo do “Estado-providência residual”, já que só oferece seu apoio às carências acumuladas do mercado de trabalho e da família, intervindo na base do caso a caso, por meio de programas reservados apenas a categorias vulneráveis, consideradas ‘merecedoras’: ex-trabalhadores colocados momentaneamente fora do mercado de trabalho assalariado, deficientes físicos, inválidos e, sob condições restritivas variáveis, mães de filhos pequenos. (…) Os Estados Unidos apresentam, assim, o paradoxo de ser uma nação que venera crianças, mas que não conta com uma política de educação e apoio às famílias, de tal modo que uma criança em quatro (e uma criança negra em duas) vive abaixo da linha da pobreza oficial; um país que gasta muito mais do que qualquer um dos seus competidores na rubrica de saúde enquanto percentual de seu PIB, mas que deixa sem cobertura médica 45 milhões de pessoas (incluindo 12 milhões de crianças); uma sociedade que sacraliza o trabalho, mas que não dispõe de nenhum dispositivo nacional de formação e de amparo ao emprego digno desse nome. E isso acontece porque a ‘caridade de Estado’ tem por objetivo central reforçar os mecanismos do mercado e, sobretudo, impor às populações marginais a rude disciplina do assalariamento desqualificado”. Op. citada, p. 92 – 93. O grifo é nosso. |
↑5 | Para mais ver Barbárie: compartilhar, de Silvia Viana. Disponível em https://diplomatique.org.br/barbarie-compartilhar/. |
↑6 | Sobre o assunto ver “O Calibã e a Bruxa” de Silvia Federici, seguido de “Cristóvão Colombo Forever”, de Roswitha Scholz, com destaque ao artigo “O valor é o homem”, da mesma autora. |
↑7 | Para um desenho mais claro do que seria essa sociedade pós-industrial, privada de direitos civis, ver “Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos”, de Loïc Wacquant. |
↑8 | O termo é de António Candido em Dialética da malandragem. |
↑9 | Ver Suicídio paira sobre estudantes norte americanos endividados. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/05/06/suicidio-paira-sobre-estudantes-endividados-nos-eua.htm, ou ainda Financiamento afundam estudantes nos EUA: dívida passa dos 5,3 trilhões de reais https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/06/internacional/1528282199_859406.html, ou Drama nos EUA: endividamento estudantil vira tema da corrida pela Casa Branca https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/drama-nos-eua-divida-universitaria-vira-tema-da-corrida-pela-casa-branca.shtml. |
↑10 | Ao que consta, o governo Reagan contou com apoio dos democratas para o corte de verbas sociais, como se isso não bastasse, um governador republicano de Wiscosin, eleito em 1992, ao implementar políticas de controle e detenção dos pobres, com corte nos gastos da União para a assistência social, “foi nomeado por aclamação para integrar a comissão consultiva bipartidária criada por iniciativa do presidente Clinton para reformar o Estado do bem-estar social”, Wacquant, op. citada, p.100. |