“Em seis dias o mundo foi criado, no sétimo folga; do oitavo em diante todos aspiram a um atestado que o dispense do trabalho.”
Antes mesmo de acordar, o trabalho, esse intruso, invadiu em sonhos os meus pensamentos. Eu tentei afastá-lo, dizer não a ele, naquele dia eu não queria trabalhar. Não recordava a última vez que dormi uma noite inteira. Ao contrário dos últimos dias, aquela manhã estava fria e, para a minha sorte e azar, o horário de verão fazia com que seis horas da manhã ainda se parecesse noite. Procrastinei o despertar até o máximo; o limite. Enquanto isso, involuntariamente recuperava na memória todas as faltas que tive naquele ano, o que bastou para não conseguir voltar a descansar. Fiquei inquieto ao imaginar o desconto no mês seguinte. Entre a vigília e o sono ressoava em minha cabeça o badalo da inquietude e da preocupação. Quando me dei conta, estava atrasado. Impossível chegar a tempo. Quando finalmente terminei de calcular o prejuízo, notei que a próxima falta ultrapassaria o limite concedido.
Ano passado foi decretada uma lei que retirava as ausências abonadas e restringia o número de faltas justificadas e injustificadas. Claro que a pressão no trabalho só aumentou e todos passaram a faltar sem prévio aviso; já não era mais possível se organizar para faltar. Eu já havia dado as quatro justificadas permitidas. Todas elas, porque estava de ressaca. Na última vez, até tentei trabalhar, só que os quinze minutos de atraso iam muito além dos dez permitidos. Passei aquele dia deitado, vendo qualquer coisa na televisão, entre um cochilo e outro e, no final da noite, preparei algo digno para comer.
Já que era tarde, tentei voltar a dormir. Mas aquela sensação de cansaço, o estado de insônia, me tomou por completo. Fiquei arrependido de não ter ido trabalhar. Recordei da parcela da TV, do aluguel, da conta de luz e água atrasada, da condição horrível em que está a bateria do meu celular, da conta do celular, da fatura do cartão e aquela noite em que bebi demais e que no dia seguinte não tive coragem em ver o quanto me custou. Certamente vou ficar mais e mais endividado. Neste apuro, recordei que já fazia alguns meses – talvez dois – desde a última vez que doei sangue. Peguei o cartão fidelidade e constatei que a última doação foi no dia 7 de agosto de 2015. Contei os dias. Passaram 63 dias – Perfeito! Melhor ainda porque naquela manhã eu não estava como habitualmente estou, de ressaca. Quer dizer, não estava com aquele tipo de ressaca provocado por álcool e farra. Não precisaria apertar aquele botão vermelho e derradeiro de descarte do material colhido. O último gesto consolador de honestidade após as reiteradas mentiras: sim, só transei com uma pessoa nos últimos três anos; não tive gripe ou resfriado nos últimos dias; não ingeri bebida alcóolica nas últimas doze horas. Confesso, sem remorso: desejar não ir trabalhar sempre foi a única verdade.
Com alívio esperei dar oito horas da manhã. Tomei um café reforçado prometendo para mim mesmo que dessa vez trocaria o meu sangue sem mentir sequer uma única vez, seja lá qual for as cláusulas do contrato. Até mesmo aquela inocente pergunta sobre se me alimentei bem nas últimas 4 horas eu responderia assertivamente com a verdade.
No trajeto até o hospital liguei o celular. Dei fim, enfim, a um podcast que, sempre suspenso entre o dedo distraído do deslizar para outros destinos, nas últimas semanas foi iniciado e interrompido não sei quantas vezes. Era uma série investigativa sobre o passado de famílias ricas que construíram seu patrimônio durante a escravidão. Foi um colega de minha antiga universidade que fez a pesquisa histórica. Desde aquela época o Francisco se interessava pelos estudos das elites econômicas do século XIX. Aproveitava a renovação historiográfica de então para investigar as relações familiares da elite paulista. Um dia, um importante professor o advertiu sobre seu interesse de pesquisa. Disse que seria mais proveitoso se o Chico pesquisasse a história econômica do século XIX não desse ponto de vista, que dizia respeito à intimidade e a experiência das pessoas, mas sim da perspectiva dos conflitos de classe e da estrutura. Chico reagiu sem temer represálias. Defenestrou o antigo professor trazendo ao público universitário outra história sobre ele.
O professor era conhecido por ter sido um importante combatente da ditadura militar, em seus artigos científico-políticos demonstrou os vínculos do regime com uma ideia de progresso. Este aspecto foi de relevância extrema para demonstrar como a nossa superexploração econômica não era uma continuidade em relação às raízes arcaicas e ultrapassadas da colonização, mas uma ruptura de caráter modernizador. Mas, Chico, hoje Francisco Rossi, revelou a todos como esse mesmo professor era tataraneto de um tal de João Bonifácio de Alcantara, importante fazendeiro do Vale do Ribeira que enricou explorando mão de obra escrava mesmo depois do fim da escravidão. O professor, que por conveniência universalista pouco sabia da história de sua família, morreu de vergonha quando todo o podre, como uma avalanche de esgoto veio ao público. Primeiro surgiu pelos corredores da pós-graduação, cresceu e chegou nas salas de aula da graduação, até que foi publicada a primeira tese sobre a família Bonifácio de Alcantara, defendida com louvor e orientada no departamento concorrente.
Rossi era bom em contar histórias antigas por ângulos diferentes. Por isso, foi importante quando ele mesmo assumiu a mesma cátedra nesta mesma antiga universidade.
Tímido, eu o admirava, mas escondia esse sentimento pela indiferença do ardil teórico, que me forçava a ter que reconhecer o grão civilizatório de seu inimigo, aquele antigo professor. Eu não podia dar o braço a torcer, esperava que as coisas mudassem para mim e que um dia o meu trabalho também fosse reconhecido e, sob esse interesseiro aspecto, estava teoricamente mais próximo à antiga perspectiva. Mas sabia que para isso faltava muito. Um muito que acreditava depender apenas de mim. Mas, enquanto isso, naqueles últimos minutos do podcast, nos quais era dado os créditos ao Chico Rossi, me via decepcionado, preso a sucessão episódica da minha derrota, caminhando para o hospital a fim de trocar meu sangue por um atestado do dia. Desliguei o celular.
No hospital, tive uma péssima notícia.
– Da licença, ainda não abriu para doação de sangue?
O hemocentro havia sido fechado. Eles resolveram concentrar todas as doações de sangue em único posto de referência. Foi isso o que explicou o segurança, que, ao contrário de mim, parecia ter acabado de doar uma desmedida quantidade de sangue. Me encostei próximo a ele, todo alívio que instantes atrás tinha sentido, sumiu. Perdi um tanto de tempo tentando pensar se existia alguma desculpa possível. Talvez, ir até o trabalho e explicar que não poderia perder aquele dia, que compensaria aquele tempo em outra ocasião. Quem sabe a minha honestidade fosse compensada com piedade. Mas nenhuma desculpa animava a coragem de me erguer daquele muro e ir até o trabalho. Também já parecia tarde.
Aproveitei os instantes ganhos com a frustração para religar o celular. A carga de sua bateria já não durava muito tempo, por isso era forçado pela condição a manter o celular mais desligado do que o contrário. Apenas o ligava quando era preciso. Naquele momento, não precisava dele, mas também não havia nada de melhor. Escorei minhas costas sobre o muro buscando a posição mais confortável possível, de torso e cabeça inclinada punha a retina a rolar. Nenhum e-mail importante, interrompi o deslizar do dedo evitando o app do banco, desviei o destino, abri o WhatsApp. Infinitas mensagens do trabalho, do grupo de vagas de emprego, dos antigos amigos de escola. Lembrei de mandar mensagem para uma colega de trabalho e contei sobre minha frustração na esperança de que pudesse me socorrer com alguma milagrosa astúcia.
No trabalho, ninguém aguenta mais passar uma longa jornada sem faltar. Por isso, são desenvolvidas as mais inusitadas sagas para se faltar. Todos, com raríssimas exceções, durantes as eleições prestam serviços para o Tribunal Eleitoral visando o direito a abonadas para cada dia trabalhado em pleno domingo; outros, como eu, doam sangue as quatros vezes permitidas ao longo do ano; alguns são jurados em júri popular; e poucos aceitam participar de Orientações para o Trabalho, já que essa só serve para faltar naquele mesmo dia e, afinal, formação para o trabalho também não deixa de ser trabalho. As sagacidades são mil.
Uma vez, um colega sem se dar conta, entregou para o gerente do trabalho um atestado de óbito que foi expressamente recusado. Quando foi questionar o motivo, foi surpreendido pela informação de que o atestado de óbito estava em seu nome. Perturbado, quando comprou o atestado não reparou que a certidão de óbito não era do seu pai, mas sua. O falsificador trocou os nomes por engano. Junior virou piada no trabalho. Por onde passava, sussurravam lá vai o defunto! Outros o recriminavam por ter matado o pai, seja o que for, Junior pagou os oitos dias seguidos. Nunca mais conseguiu ter licença prêmio e o mais duro é que quando deu o tempo de trabalho para poder se aposentar, teve que pagar mais oitos dias para se aposentar.
Em seis dias o mundo foi criado, no sétimo folga; do oitavo em diante todos aspiram a um atestado que o dispense do trabalho.
A Carmen é a colega que conheço que mais manja como conseguir um atestado que não onere o trabalhador ao fim do mês. Por conta disso, nos tornaríamos amigos se também isso não fosse levar algo do trabalho para fora dele. Nossa relação se restringe e é definida pela maledicência ao trabalho. Foi para ela que enviei uma mensagem com o motivo de minha frustração. Ela era rápida em responder, principalmente quando estava no trabalho, e antes que minha bateria acabasse mandou um áudio pragmático.
– Meu! Vai na psiquiatria e diz que não está bem.
Nunca tinha cogitado essa possibilidade. Não pela obvia razão de que estaria mentindo se dissesse que estava louco; sabia que não estava e a frieza com a qual eu conseguia mentir para enganar o trabalho poderia demonstrar como eu estava em pleno juízo. Mas nunca tinha pensado nisso porque estimo e considero o trabalho médico, sobretudo psiquiátrico.
Nos últimos anos, muitos colegas de trabalho foram encaminhados à psiquiatria. Alguns de nossos clientes – como o gerente tratava nosso público e fazia questão de nos advertir questionando nossa eficiência – também estavam às pencas sendo carregados para as consultas psiquiátricas. Eu sabia que os meus motivos, ao contrário, não eram verdadeiros e que se necessitava de um atestado era para não encarecer o custo financeiro da farra. Pagado o preço material, não há de encarecer ainda mais com o custo moral da culpa que tenta refrear, em vão, a mentira. Por isso, mentia com desfaçatez. Mas até mesmo para mim o singelo pragmatismo da Carmen espantava.
Estava agoniado pela falta de alternativa que o tempo impunha para mim. Os hemocentros fecham ao meio-dia, ir até o único que restou no centro da cidade não era mais possível. Nesta situação, coloquei em exame a solidez que atribuía à magnitude da classe médica. Ainda lembrei do ilustre Bacamarte, que foi entre todos o mais aplicado louco. Pensei se também eu não estava um pouco insano. E de juízo em juízo fui encadeando casuisticamente as mais delirantes razões que demoliram a solidez dos meus preconceitos inadequados à situação. Se não estava convicto da minha completa loucura, era razoável que conseguisse um atestado.
A última barreira que restou, portanto, não era de ordem moral. Eu precisava convencer o médico a não me atestar mais do que o suficiente para não “cair na caixa”. Conheci um colega que realmente enlouqueceu depois que foi afastado por mais de 30 dias. Ele voltou tantas vezes à perícia que lhe era exigida, e que infelizmente sempre coincidia com alguma falta do médico que, de tanto se enroscar nos protocolos ordenados, ficou sem a mísera pensão. Como o pobre coitado se ausentou mais de 30 dias consecutivos sem atestar sua justificativa, não teve advogado que conseguisse reintegrá-lo ao trabalho.
Não foi fácil nem difícil conseguir uma consulta na emergência da ala psiquiátrica. Para meu espanto, não havia muitos loucos. Reconheci espalhados pelas cadeiras da recepção alguns colegas. A parte difícil foi perder a manhã e praticamente toda a tarde naquele amplo corredor de espera, aguardando ser atendido. A fácil é que a psiquiatria ficava no mesmo prédio do antigo hemocentro. Conversando com o apático segurança, descobri que esse era um dos motivos pelos quais aquela unidade de doação de sangue foi fechada. A psiquiatria precisava de novos leitos e o jeito foi conquistar aquele andar que as vezes passava dias sem receber algum doador. Minha consciência social ouvia aquilo lamentando e com certo orgulho próprio que atestava meus propósitos.
Paulo da Silva Pereira!
Meu nome ecoava vindo da última sala daquele cumprido corredor. Enquanto caminhava, lembrei da conversa que tive com o desconhecido colega que também aguardava ser chamado. Ele me aconselhava a se fingir de louco durante a consulta. Na última vez, disse para o médico que agrediu uma pessoa no trabalho. Enquanto contava suas mais piradas histórias, ele sorria de um jeito muito parecido com o meu. Lembrei da história que eu contava quando fui barrado na segunda vez que pretendia doar meu sangue. Tinha dito para a enfermeira que no período do último ano tinha transado com quatro pessoas diferentes. Eu estava mentindo, achei equilibrado a opção que coubesse em uma única mão sem expor todos os dedos. Mas a moça da triagem me dispensou alegando que o máximo permitido eram três. Eu contava essa história achando graça da hipocrisia hospitalar e do meu cinismo, desde então fiz de mim uma pessoa casada, que só transa com camisinha, que não vai nunca ao dentista nas últimas semanas, que não bebe e que nunca fica resfriado ou gripado.
Mas dessa vez achei por bem não inventar nenhuma história biruta. Apressei o passo e diminui os devaneios. Encontrei um médico que parecia mais jovem do que eu, devia ter no máximo trinta anos, era descolado na maneira como se vestia, pois não estava de jaleco nem de roupa branca. Bernardo Maia vestia uma calça cáqui e camisa social amarela de manga comprida dobrada sobre o antebraço. Pediu para eu me sentar, decidido fechou a porta, sentou-se e olhou primeiro para o computador. Em seguida para mim. Iniciou a consulta perguntando algumas coisas protocolares, parecia preencher uma ficha. É a primeira vez aqui? Eu respondi a tudo ligeiro e com muita atenção. Há um bom tempo atrás passei por uma dermatologista que ao me perguntar o porquê estava ali respondi atabalhoado e vexado que o motivo da minha preocupação eram algumas rugas que surgiram em meu rosto. Embaixo do olho, disse indicando com o dedo. Com alguma surpresa ela se levantou e meio que foi encerrando a consulta. Perguntou minha idade, – naquela ocasião não ultrapassava os 23 anos – logo finalizou a consulta indicando um protetor solar e foi abrindo a porta. Só quando ela fechou a porta sobre a minha sombra empurrando a noção a se mancar, foi que notei o meu equívoco. Quis dizer verruga, pensei. Mas calei em pensamentos.
Com muita cautela respondi ao psiquiatra que era a minha primeira vez ali, que tinha 35 anos, que não era alérgico a nada, que nunca tinha feito nenhuma cirurgia. Com muita atenção respondi ligeiro ao questionário tentando encurtar o máximo possível aquele momento. Quem sabe ainda conseguiria aproveitar a noite. Mas, inesperadamente, fui defrontado por uma pergunta que inicialmente me causou sob a pele a sensação de comichão, inquietando o corpo todo, apertando o peito e me fugindo o ar.
– O que você faz da vida?

Leandro Nascimento
é professor de Filosofia e Literatura para o Ensino Médio e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP).