A literatura das duas últimas décadas sobre Stálin é fortemente marcada por disputas narrativas. Ainda nos anos 1990, Ludo Martens falou em um “novo olhar” sobre a URSS stalinista que, no entanto, era estranhamente similar à versão comunista oficial dos anos 1930. Avançando na desconstrução da “lenda negra” de Stálin no Ocidente, D. Losurdo transformou o ditador todo poderoso em uma vítima de conspirações – também reproduzindo a legitimação oficial do assassinato de opositores. De outro lado, a fome ucraniana no período de solidificação do poder de Stálin tornou-se o núcleo da nova historiografia nacional da Ucrânia após a independência desse país, em 1991. Essa releitura da história, consolidada em uma “Lei da Memória”, de 2006, transformou a fome em massa produzida pela coletivização forçada no campo em um projeto de extermínio de ucranianos étnicos. Ela também permitiu que antigos colaboradores dos nazistas na Ucrânia fossem declarados heróis da independência.
O livro de Roy e Zhores Medvedev, Um Stálin desconhecido,[1]Um Stálin desconhecido / Zhores A. Medvedev, Roy A. Medvedev; tradução de Clóvis marques – Rio de Janeiro: Record, 2006. publicado há 20 anos, é um contraponto importante à polarização atual entre negacionistas e revisionistas. Roy Medvedev é um historiador, autor do volumoso Let History Judge, de 1969, que aborda as “origens e consequências” do stalinismo a partir de um ponto de vista marxista dissidente. Seu irmão, Zhores, foi um cientista renomado e preso político na URSS durante os anos 1970. Como disse Ralph Miliband, “[Roy] Medvedev escreve como marxista e pode ser considerado como representante de uma tendência da oposição socialista na URSS”. [2]Ralph Miliband, “Stalin and After. Some Comments on Two Books by Roy Medvedev”, Vol. 10: Socialist Register, 1973. Um Stálin desconhecido, porém, não é mais uma biografia do ditador entre as muitas escritas após a abertura dos arquivos da URSS. Em vez disso, os irmãos Medvedev, que também se valem amplamente desses documentos, lançam luz sobre pontos específicos e especialmente obscuros do período stalinista.
A posição dissidente dos irmãos Medvedev não transforma cada evento histórico em uma oportunidade para desconstruir a figura de Stálin. Eles estão interessados em traçar um retrato realista. Algumas controvérsias sobre a condução da guerra dão um bom exemplo: o pacto Molotov-Ribbentrop, que hoje alimenta a teoria revisionista de que a guerra mundial foi causada conjuntamente por russos e alemães, não é demonizado: “ao firmar um pacto com Hitler, Stálin tornou inevitável que os países da Entente entrassem em guerra com a Alemanha” [p. 310] e, além disso, transformou os territórios ocidentais ocupados em uma zona-tampão contra a blitzkrieg [p. 311]. Embora seja um fato que Stálin tenha demorado a reconhecer a inevitabilidade do ataque alemão em 1941, o livro dos Medvedev argumenta que a decisão de Stálin, contra seu Estado Maior, de “garantir o máximo possível de forças em reserva” (p. 300) em vez de concentrar as divisões militares em uma grande batalha na fronteira ocidental nos primeiros dias da guerra foi acertada. Ele também refuta a ideia difundida a partir das “Memórias” de Kruchev, de que Stalin, em súbita depressão, teria abandonado a liderança do país nos primeiros dias da guerra. Em contraposição, ele mostra, com base nos registros de secretários [esses registros foram tornados públicos na Rússia entre 1994-7], uma “atividade frenética” no gabinete de Stálin no Kremlin naqueles dias e, nas semanas seguintes, uma concentração inédita do poder em suas mãos.
Outro exemplo é a intervenção de Stálin no debate sobre a linguagem: o artigo de Stálin, de 1950, contra o “novo ensinamento” dos discípulos de Nikolai Marr, em meio a uma disputa pela autoridade teórica nesse campo, afirmava que a língua é um elemento persistente e não uma “superestrutura” derivada da base econômica: “a contribuição de Stálin ao debate linguístico teve globalmente um efeito positivo” [p. 288].
Isso não esconde as distorções da ideologia stalinista, a começar pela ideia de que cada ramo da ciência, tal como na economia, “precisava de uma autoridade central’ [p. 258]. Também não estão ausentes aqui nem os traços notórios de crueldade individual de Stálin, p.e., no modo sádico como ele brinca de gato e rato com Bukharin até obter uma rendição total que levou à execução do seu adversário e à prisão da família dele, [3]Roy Medvedev publicou no Brasil o livro “Os últimos anos de Bukharin”, lançado originalmente em 1983. nem os aspectos sociais mais brutais do seu regime, como a limpeza étnica contra minorias e povos muçulmanos no Cáucaso, nas estepes do Volga e na Criméia: “no total cerca de dois milhões de pessoas foram deportadas para o leste” [p. 357]. Outro exemplo de brutalidade do regime pode ser observado na corrida pela bomba atômica no final da II guerra. Já nos primeiros meses de 1945, o Kremlin recebia informações de que os EUA estavam prestes a realizar seu primeiro teste nuclear. A produção russa de urânio puro era feita com a ajuda de equipamentos que escaparam aos bombardeios e de especialistas alemães. Foi criado, então, um “Gulag atômico” com base no recrutamento de prisioneiros e aproximadamente 11 instalações nucleares que funcionavam em um sistema ainda mais rígido que os campos administrados pela NKVD. Em suas memórias, o químico industrial Nikolaus Riehl, que trabalhou para os soviéticos após a derrota alemã, comenta: “o trabalho foi executado por prisioneiros, em grande parte soldados soviéticos que haviam sido capturados pelos alemães. Ao retornarem, não foram recebidos com flores e música. (…) Pelo contrário, foram condenados a vários anos de prisão, acusados de covardia diante do inimigo” [p. 173]. Após o cumprimento da pena, os operários da usina de urânio eram deportados para o remoto Oblast de Magadan, sem direito a retorno.
Mais do que apenas aspectos brutais da política de Stálin, a abordagem dissidente dos Medvedev revela a natureza desse regime por trás da versão comunista oficial: sobretudo os autores veem “certa plausibilidade” [p. 361] na tese de que o Stálin tinha um plano nacionalista russo que, já no período de formação da URSS, entrou em confronto com a visão de Lenin sobre o problema das nacionalidades [p. 350]. O georgiano, que mal sabia escrever em sua língua natal, promoveu efetivamente uma russificação forçada do país, especialmente da parte europeia. Passado o período “destrutivo” da revolução, novas estruturas sociais e econômicas foram edificadas por meio de uma restauração da velha Rússia autoritária [p. 362].
O livro também reconstitui meticulosamente a morte de Stálin e comenta as teorias sobre um complô do círculo dirigente. A teoria de que o ditador teria sido vítima de um envenenamento progressivo foi alimentada pela iminência de novos julgamentos-espetáculo. Os preparativos para esse último grande expurgo estavam associados a uma ampla campanha antissemita liderada pelo Pravda contra “médicos sabotadores” e visando uma renovação do grupo dirigente. Isso efetivamente colocava em risco muitas das lideranças que cercavam Stálin. Essa campanha era acompanhada de uma segunda campanha, mais local, contra o “complô antissoviético” da minoria mingreliana, na Geórgia (tendo como alvo os partidários de Béria). A suposição de morte por envenenamento ganhou ainda força pelo fato de “a versão oficial ter falsificado a data e o local do derrame final de Stálin [p. 20], devido a “uma longa e inexplicada demora em chamar os médicos”. Roy Medvedev reconstitui os acontecimentos dos dias 1-2 de março de 1953 a partir dos registros da dacha e de vários depoimentos e memórias, incluindo a dos responsáveis diretos pela segurança pessoal de Stálin. Ele teria sofrido um derrame às 10h, mas os funcionários só ousaram entrar em seu quarto por iniciativa própria às 22h. Ao chegar à dacha, por volta da meia-noite, Béria ordenou aos guardas que “ninguém fosse informado da doença de Stálin”. Outros líderes que pertenciam ao círculo intimo do poder, como Kruchev e Bulganin, nem chegaram a entrar na casa. Os médicos só foram chamados na manhã seguinte, por iniciativa dos próprios funcionários, que temiam uma acusação de omissão de socorro. A morte de Stálin fez cessar da noite para o dia na imprensa soviética a campanha antissemita do “complô dos médicos terroristas”. Com Stálin fora de ação, dois complôs competiam pela sucessão: de um lado Béria e Malenkov, de outro, Kruchev e Bulganin. A tese do envenenamento continua sendo uma simples conjectura. Também é improvável que após uma hemorragia cerebral muito grave, algo pudesse ser feito para salvar Stálin. Seja como for, permanece o fato de que nenhum dos candidatos à sucessão tinha o menor interesse em salvá-lo. Junto com as campanhas conspiratórias na imprensa, Stálin também havia preparado uma ampliação e renovação da direção partidária. Pouco antes de ser declarada oficialmente a morte do ditador, porém, seu Conselho de Ministros já havia impedido qualquer renovação imediata na liderança.
Um dos capítulos mais interessantes de Um Stálin desconhecido é o que descreve como Stálin pretendia perpetuar seu legado por meio de um “herdeiro secreto” no Kremlin. “Stálin eliminou vários membros de sua entourage”, mas ele também “contava com certos dirigentes de Estado e do Partido para manter o culto a sua personalidade” [p. 61]. A reviravolta após sua morte evitou que o seu círculo imediato caísse em desgraça (com exceção de Béria) e viu a ascensão temporária de Malenkov e Kruchev, que chegou a denunciar o culto de Stálin. Isso, porém, não durou muito. Em menos de uma década a denúncia formal dos crimes da era stalinista foi revogada e a “abertura” relativa foi interrompida.
O problema da sucessão de Stálin foi colocado em 1948, quando o número dois do Partido, A. Jdanov, que controlava com fanatismo ideológico a vida cultural soviética, morreu inesperadamente aos 52 anos. A morte de Jdanov “alterou o equilíbrio de poder no partido e no Estado”. [p. 76] Foi sua morte prematura que desencadeou a teoria da conspiração dos médicos judeus. Quando Stálin convocou inesperadamente o 19.º Congresso, em 1952, o primeiro depois de 1939, isso indicava que “embora seus desígnios ainda estivessem disfarçados, ele estava decidido a se assegurar de que ‘a grande época de Stálin’ preservaria seu lugar na história” [p. 65]. Stálin usou o Congresso para atacar violentamente dois nomes populares da “velha geração”, Mikoyan e Molotov, cuja esposa, de origem judaica, estava presa, acusada de “colaborar com o sionismo”, eliminando a possibilidade de que eles viessem a desempenhar um papel de liderança. O Presidium do Comitê Central do Partido foi ampliado com uma lista de novos membros (incluindo L. Brejnev) que isolava os antigos dirigentes. Com o 19.º Congresso, Stálin também queria resgatar o papel dirigente do partido, ofuscado, desde o início da guerra, pelo Conselho de Ministros, bem como o papel dirigente da ideologia no Partido.
A posição de Jdanov como comandante do Departamento de Ideologia contrastava com a carreira tecnocrática e sem “cabedal ideológico” de quase todos os altos membros da hierarquia do governo. Também diferia das novas lideranças que se destacaram pela capacidade organizativa e intelectual, como N. Voznesensky, um dos responsáveis pela reorganização da indústria soviética durante a guerra. Sua execução, em 1950, é com frequência atribuída a Malenkov e Béria, que estavam por trás do “Caso Gosplan”. É muito provável, porém, que o próprio Stálin estivesse a par das informações falsas contra Voznesensky [p. 77], pois o ditador se incomodava especialmente com a ascensão de dirigentes com uma carreira independente. Isso era uma ameaça potencial ao “culto à personalidade”. O herdeiro secreto de Stálin, portanto, tinha de ser, ao mesmo tempo, o oposto de uma liderança capaz de desencadear “reformas” e do tipo tecnocrático que ascendeu ao poder após o expurgo da velha guarda bolchevique, isto é, tinha de ser um ideólogo, tal como Jdanov.
O nome preparado por Stálin depois de 1948 para essa função foi M. Suslov, que passou a atuar junto ao aparato do Comitê Central do partido, como chefe da agitação e propaganda. Como responsável pelo trabalho ideológico em todo o país, Suslov “começou a exercer maior influência sobre a vida soviética que qualquer outro membro do Birô Político à exceção de Stálin” [p. 83]. Ao mesmo tempo, ele se manteve fora da disputa direta pelo poder entre as facções Beria-Malenkov e Kruchev-Bulganin, evitando tornar-se um alvo fácil. Suslov subiu na hierarquia dirigente como um emissário pessoal e secreto de Stálin: ele atuou como supervisor informal, que se reportava diretamente a Stálin, dos deslocamentos forçados de populações muçulmanas do Cáucaso e da Criméia durante a guerra e na repressão dos nacionalistas bálticos depois de 1945. Em seguida, foi o principal encarregado de supervisionar a “sovietização” dos países do Leste da Europa. Suslov apresentou o relatório que resultou no afastamento de Kruchev, em 1964. Isso desmente a tese da “restauração”, segundo a qual a degeneração do sistema soviético se deu por causa da ruptura com o stalinismo. Reformadores como Kruchev e Kossygin foram claramente derrotados pela “ortodoxia”.
Como “principal ideólogo do PCUS”, Suslov deu inicio à reabilitação relativa de Stálin. Esse período de restalinização foi também o da consolidação de uma liderança burocrática coletiva, da “estagnação” crônica e da corrupção generalizada – com tendências especialmente mafiosas na periferia da URSS. O “período da estagnação” não se limitava à economia, mas também abarcava a vida ideológica e cultural do país. Durante esse período, retomou-se o controle agressivo dos dissidentes internos e dos países do pacto de Varsóvia. “Depois da morte de Stálin”, conclui Zhores Medvedev, “Suslov conseguiu proporcionar ao stalinismo cerca de vinte anos de sobrevivência ativa” [p. 88]. Com a derrota da desestalinização limitada de Kruchev, foi encontrada a solução para o problema da camada dirigente. A URSS continuava a ser um Estado autoritário e policial, mas sem os aspectos terroristas que impediam as elites burocráticas de construir uma carreira estável no Estado ou no Partido.
Muito do que se escreveu no Ocidente sobre Stálin fica simplesmente ridicularizado pela pesquisa de Roy e Zhores Medvedev. O livro dos irmãos Medvedev não apenas trouxe elementos novos para o debate sério sobre a época de Stálin, como também, vinte anos depois, continua a ser um antídoto, amplamente baseado em documentação histórica, contra revisionistas e negacionistas dos crimes do stalinismo.
Marcos Barreira
é doutor em Psicologia Social pela UERJ e coautor do livro Até o último homem, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito. Boitempo, 2013. Tradutor e editor da edição em português do site Krisis.
↑1 | Um Stálin desconhecido / Zhores A. Medvedev, Roy A. Medvedev; tradução de Clóvis marques – Rio de Janeiro: Record, 2006. |
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↑2 | Ralph Miliband, “Stalin and After. Some Comments on Two Books by Roy Medvedev”, Vol. 10: Socialist Register, 1973. |
↑3 | Roy Medvedev publicou no Brasil o livro “Os últimos anos de Bukharin”, lançado originalmente em 1983. |