Resenha do livro Autonomy: The Social Ontology of Art Under Capitalism [1] BROWN, Nicholas. Autonomy: The Social Ontology of Art Under Capitalism. Duke University Press, 2019. , de Nicholas Brown, ainda sem tradução em português.

O novo livro de Nicholas Brown é dividido (não tão claramente) entre, de um lado, uma longa e densa introdução teórica e, de outro, uma série de análises envolventes, sobretudo de obras de arte contemporâneas, selecionadas a partir de uma variedade impressionante de campos – fotografia e cinema, romance, música, televisão -, um panorama substancial que tende a obscurecer seu argumento fundamental e a levantar uma série de questões conflitantes. Seria o livro sobre a natureza da arte (ou sobre a natureza da arte genuína, o que é um problema bem diferente)? Ou sobre as belas artes e a cultura de massas? Sobre se a arte pode ser política? Ou sobre se a vanguarda hoje tem a mesma função que tinham no período modernista? Essas e outras questões relacionadas à estética foram ardentemente debatidas em vários momentos do passado recente, e não é difícil vislumbrar os fantasmas de alguns debates famosos e polêmicos que emergem de tempos em tempos: o assim chamado debate Brecht-Lukács nos anos 30, por exemplo, ou aquele entre figuração e abstração no período imediatamente posterior à guerra; ao lado das figuras de Clement Greenberg e T.W. Adorno, ou mais recentemente Michael Fried, cuja polêmica acerca do minimalismo e conversão recente à fotografia como forma de arte não estão nunca muito distantes das discussões de Brown; ao lado da crítica mais política feita por Roberto Schwarz ao Tropicalismo brasileiro. Enquanto isso, todas as ansiedades populistas e esquerdistas em torno das possibilidades políticas da arte são perceptíveis.  Não tão distantes disso estariam aqueles estetas do tipo de Rancière, ansiosos por preservar uma “experiência estética” ameaçada.

De fato, o título parece inclinar o livro em favor dessas figuras, com sua alusão escassamente velada à trilha sonora de Adorno (“a autonomia da obra de arte”). Assim como o faz a capa, na verdade, que parece atender aos apelos do gosto popular – ou ao menos do gosto dos estudos culturais -, com sua representação do Chanel No.5, um produto caro e de elite cuja “distinção” conquistou um público de classe média. Um aperto de mãos entre Stravinsky e Walmart? Fotografia como propaganda? Mas a piada recai sobre a cultura pop, pois não é em absoluto a caixa do Chanel No.5, mas sim sua reconstrução como “obra de arte” feita em 2016 por Viktoria Binshtok: as cópias originais de Warhol submetidas a um procedimento estético muito complexo, no espírito de Thomas Demand, em que a artista reconstruiu completamente o objeto original desde o rascunho até a sua reprodução.

Essa imagem dá o tom apropriado para a abordagem da nova estética proposta por Brown, que, disfarçada de pastiche da cultura de massas, oferece um novo ataque à forma-mercadoria ao mesmo tempo em que parece modificar o que conta como arte hoje. Como a filosofia moderna, a estética sempre foi o campo de uma batalha entre objeto (ou substância) e processo. A análise inovadora que Kant fez do belo, em sua Crítica da faculdade de julgar, de 1790 (publicada durante a Revolução francesa, de que ele era, aliás, um crente fervoroso, mesmo durante o Terror), foi seguida quase que imediatamente (1795) pelas Cartas sobre a educação estética do homem, de Schiller, um trabalho abertamente político, ou antipolítico, em que, como mais tarde Le Corbusier faria, se argumenta que a transformação estética do mundo tornaria a revolução desnecessária [2]Eu sigo, aqui, a leitura popular da Terceira Crítica, que assume erroneamente que ela seja sobre estética, que ela seja um tratado sobre a natureza do belo; enquanto que, na verdade, Kant estava … Continue reading . A ênfase colocada por Schiller no jogo diferencia agudamente sua noção de arte da abordagem kantiana do belo (ou do sublime) como a experiência de um certo tipo de objeto. Uma história longa e truncada de conflito entre filósofos e produtores artísticos (e entre o belo e o jogo) nos deixa novamente na mesma situação em que o seminário de Adorno sobre estética quando reafirma a centralidade do belo; enquanto que a geração seguinte, apoiando-se em tradições não-ocidentais, elabora uma série de teorias da performance.

É a história que é então interceptada pela emergência de movimentos políticos de massa; e as questões das consequências políticas e da função da arte complicam aquelas que seriam puramente estéticas, inventando uma oposição entre formalismo e realismo (ou representação) que se acirra e alarga muito o número de combinações possíveis. Quanto à realidade, ela então castiga esses argumentos e posições teóricas abstratas ao desenvolver uma sociedade em que a mercantilização penetra cada vez mais todos os aspectos da vida quotidiana e espalha a sua lógica ao redor do mundo, reduzindo a arte a uma mercadoria no processo. A noção adorniana de arte (ao lado da natureza e do inconsciente) como sendo o último refúgio contra a forma-mercadoria hoje terminou por parecer obsoleta, assim adicionando um nível de complexidade completamente novo para o pensamento estético.

O que estaria em questão não é se a arte política é possível, mas se a arte mesma pode continuar a existir num mundo no qual tudo se tornou uma mercadoria. A revolução cultural proposta por Schiller, revivida no ideal marcuseano de uma sociedade pós revolucionária essencialmente estética, tem sido sombriamente realizada em sua forma caricatural: a visão de Benjamin de uma estetização (que ele associava ao fascismo) tomando a forma de consumismo, sociedade do espetáculo e da simulação, sociedade da imagem, consumo de informação como a forma final do capitalismo tardio. O interesse desinteressado kantiano parece agora realizável somente na forma de uma mercadoria que não podemos consumir.

Apesar de uma das especulações mais contra-intuitivas de Adorno – qual seja, a de que o trabalho de arte “autônomo” resiste à mercantilização ao tomar ele mesmo a forma da mercadoria – a solução mais satisfatória inventada e sustentada pelo vários modernismos colocava um ideal de subversão, ou debilitamento, transgressão, negação, estranhamento, dependendo da natureza da arte em questão. Isso é algo que presumivelmente se pode alcançar no conteúdo – escândalo, revelação doentia ou exposição – assim como na forma. Não obstante, as versões modernistas desses efeitos eram organizadas por vanguardas; enquanto que no mundo dos novos museus e galerias de arte e da prática curatorial “contemporânea”, assim como na institucionalização dos clássicos modernistas nas universidades, essas estratégias já não pareciam viáveis.

Minha impressão é que a mensagem mais profunda da obra de Brown está em suas demonstrações (em um campo vasto das artes) de que a subversão ainda existe como uma possibilidade artística, mas que ela foi radicalmente interiorizada, como um vírus dentro da obra de arte mesma, que já não é mais tão autônoma assim. A obra agora precisa construir suas próprias leis genéricas de modo a subvertê-las, como nos documentários falsos de Jeff Wall. Isso quer dizer, por outro lado, que a antiga distinção entre belas artes e cultura de massas também desapareceu.

Nós podemos julgar tais possibilidades através de um dos comentários mais paradoxais de Brown, no qual afirma que “O Exterminador do Futuro pode ser uma obra de arte enquanto que Avatar é somente uma mercadoria artística” [3] idem, p. 33. . Visto que esses ambos filmes comerciais podem compartilhar um gênero identificável (ficção científica) e que ambos são produtos artesanais suficientemente distantes daquilo que foi pensado tradicionalmente como “arte”, essa colocação pode, à primeira vista, ser descartada como mera expressão de um gosto pessoal. Brown observa, no entanto, que a narrativa de viagem no tempo na qual O Exterminador… é um exemplo, tem leis e limites genéricos muito mais rigorosos, para além dos quais ela se abole a si mesma: o famoso momento Bradbury em que o viajante-temporal pisa em uma borboleta pré-histórica e muda o mundo, levando a um universo em que a alteridade deixou de existir – “Eu sou o meu próprio avô”, como diz o velho ditado. O subgênero, portanto, fornece a si mesmo leis que tornam possíveis a James Cameron que ele “produza uma solução para o problema do filme de viagem no tempo que ao mesmo tempo produz o filme de viagem no tempo como o problema a que a solução responde” [4] idem, p. 32. . Suas possibilidades, “ao invés de demandas atribuídas aos consumidores, são imanentes à lógica do gênero”.

(Eu, na verdade, acredito que se poderia defender a reflexividade de Avatar, levando em conta que seus vôos que desafiam a gravidade tratam da tridimensionalidade de seu novo suporte proporcionada pela Imax; mas deixemos isso passar).

A questão mais profunda levantada por tais análises, e o livro inovador de Brown consiste em uma série impressionante e variada delas, reside na sua falha em periodizar tudo isso e situar sua “ontologia social da arte” no capitalismo tardio. Essa aparição aparentemente incongruente de James Cameron entre as obras de arte cuja “autonomia” deve ser demonstrada aqui, é suficiente para fazer soar a antiga oposição entre belas artes e cultura de massas, que era essencial para a autodefinição do modernismo. Conversões espetaculares, como aquela de Michael Fried à fotografia, mostram que a apologia tradicional ao cânone não mais funciona na situação de mercantilização universal; e que o apelo feito pelas pessoas dos estudos culturais para que se leve a cultura de massas mais a sério foi inesperadamente atendido pela alta seriedade da arte contemporânea ela mesma. 

Isso é precisamente o que significou, entre outras coisas, o giro pós-moderno. Pode-se evitar o termo, como faz Brown, somente se se encontra uma palavra melhor para isso, mas não se pode evitar a periodização. A tentativa muito difundida, no direito estetizante, de substituir o slogan “contemporâneo” é ela mesma um sintoma suspeito; deve-se ser contemporâneo de alguma coisa, uma necessidade que já demanda alguma noção de tendências, senão de movimentos, históricas. A periodização certamente não resolve nossos problemas políticos, mas a antiperiodização é também certamente só uma tentativa desesperada de fugir deles e de evitar o confrontamento com a evolução e futuro do capitalismo em sua fase atual, historicamente original. Deixe-me adicionar que o retorno à estética como um campo ou disciplina (ao lado dos “retornos” simultâneos à ética ou à ciência política, ou até à Filosofia mesma como um assunto coerente em si mesmo) é igualmente regressiva – um pastiche, no nível intelectual, da ordem de todas as outras imitações que o pós-modernismo já tentou em sua agora extensa vida. Uma poética, por um lado, é uma operação profundamente histórica; e o que temos diante de nós são os materiais para uma poética da pós-modernidade. Isso é um diagnóstico, não um manifesto; e Autonomy nos fornece uma maneira desconfortável de pensar sobre arte em uma situação impossível. Não a entreguemos àqueles que querem se sentir confortáveis com ela.


Fredric Jameson

foi crítico literário e teórico marxista, conhecido por sua análise da cultura contemporânea e da pós-modernidade.  Sua interpretação do pós-modernismo como a “lógica cultural do capitalismo tardio” inovou o horizonte da teoria crítica contemporânea. 

Pedro Naccarato

Ricardo Menezes

Original: http://docs.lib.purdue.edu/clcweb/vol22/iss3/1

References
1 BROWN, Nicholas. Autonomy: The Social Ontology of Art Under Capitalism. Duke University Press, 2019.
2 Eu sigo, aqui, a leitura popular da Terceira Crítica, que assume erroneamente que ela seja sobre estética, que ela seja um tratado sobre a natureza do belo; enquanto que, na verdade, Kant estava tentando estabelecer a possível validade lógica de juízos acerca do belo como tal (independentemente do conteúdo de tais juízos ou da natureza do artefato belo em si mesmo).
3 idem, p. 33.
4 idem, p. 32.

Posts Similares

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *