Por Jean- Louis Déotte.
A originalidade do pensamento de Benjamin teria consistido em separar as artes de suas condições técnicas que marcam época, em pensar a arte necessariamente aparelhada, e em conceber a aparelhagem cinematográfica como aquela que permite a recepção poética das técnicas.
Em A partilha do sensível, Jacques Rancière confronta novamente Benjamin, seu alvo privilegiado ao lado de Jean-François Lyotard. À questão de saber se “as artes mecânicas” (fotografia e cinema) criaram um novo regime de visibilidade para as massas, e consequentemente um novo modo de identificação para as artes, ele responde o seguinte: “[…] há talvez um equívoco a ser esclarecido quanto à noção de ‘artes mecânicas’. Aproximei um paradigma científico de um paradigma estético. A tese benjaminiana, por sua vez, supõe outra coisa que me parece duvidosa: a dedução das propriedades estéticas e políticas de uma arte a partir de suas propriedades técnicas. As artes mecânicas induziriam, enquanto artes mecânicas, uma modificação de paradigma artístico e uma nova relação da arte com seus temas. Essa proposição remete a uma das teses mestras do modernismo: a que vincula a diferença das artes à diferença de suas condições técnicas ou de seu suporte ou medium específico. […] E o sucesso persistente das teses benjaminianas sobre a arte na era da reprodução mecânica se deve, sem dúvidas, à passagem que asseguram entre as categorias da explicação materialista marxista e da ontologia heideggeriana, referindo o tempo da modernidade ao desdobramento da essência da técnica. […] É preciso, no meu entender, que se tome as coisas ao inverso. Para que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas ou, antes, ao indivíduo anônimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes”.[1]
A tese modernista a que ele se opõe, a redução de uma arte ao seu suporte, tem por nome Greenberg. Rancière mostra a contradição inerente a essa tese: Greenberg, para quem “o fim próprio da pintura é somente dispor pigmentos coloridos numa superfície plana, em lugar de povoá-la de figuras representativas, referidas a existências exteriores situadas num espaço de três dimensões”.[2]
Rancière vai desenvolver uma crítica exemplar do medium, que poderíamos estender a todas as pretensões midialógicas como aquelas de Debray: “‘Utilizar somente o meio (medium) próprio de uma arte’ quer dizer duas coisas. De um lado, é fazer uma operação puramente técnica: o gesto de espalhar uma matéria pictural na superfície apropriada. Resta saber qual é o próprio dessa apropriação e o que permite, por conseguinte, designar tal operação como arte pictural. Para isso, cumpre que a palavra meio (medium) designe algo completamente diferente de uma matéria ou de um suporte. Ela precisa designar o espaço ideal de sua apropriação. A noção, portanto, deve-se duplicar discretamente.
De um lado, o meio (medium) é o conjunto de meios materiais disponíveis para uma atividade técnica. ‘Conquistar” o meio (medium) significa, então: limitar-se ao exercício desses meios (moyens) materiais. Mas, de outro lado, a ênfase recai na própria relação entre fim e meio (moyen). Desse modo, conquistar o meio (medium) quer dizer o contrário: se apropriar desse meio (moyen) para fazer dele um fim em si, negar essa relação do meio [moyen] com o fim que é a essência da técnica.”[3] Diremos então, com Rancière, que a reivindicação de Greenberg só tem sentido dentro da perspectiva que diz que a pintura deveria ser “autônoma”, exibindo-se a si mesma em um certo momento da história como tendo realizado a sua essência.
A modernidade seria esse momento ilusório do fim da história onde as artes não poderiam fazer mais que repetir que elas são somente seu medium. E como, empiricamente, as artes se tornaram algo visivelmente diferente, só resta proclamar que elas não são mais idênticas à sua essência, e, portanto, que elas degeneram (é a crítica que Lyotard desenvolve do prefixo pós, como em pós-vanguarda, ou neo, como em neo-geo etc.). Rancière se apoiará nessa contradição interna do medium em Greenberg – o medium que é uma técnica sem finalidade, isso que seria para ele contrário à essência mesma da técnica – para colocar a ênfase naquilo que identifica a arte como arte e, assim, nos diferentes regimes da arte, que são regimes de identificação da arte.
Ora, essa tentativa tem como consequência o esquecimento de que a arte sempre se identificou com a técnica. Rancière quer reduzir os regimes da arte à retórica para não ter de pensar seu substrato técnico. Daí os três regimes que ele distingue e que sempre tem como matriz uma obra literária: A República de Platão para o “regime ético das imagens”, a Poética de Aristóteles para o “regime representativo das artes”, Madame Bovary para o “regime estético da arte”.
Voltaremos então à identidade contraditória do medium, e partiremos dela: ele, o medium,é uma técnica que é a sua própria finalidade de acordo com épocas diferentes. É, portanto, uma técnica que não se pode reduzir ao uso, como sempre se faz com os objetos técnicos. Uma técnica que seria outra coisa que não o uso para um fim, como a finalidade sem fins em Kant, é justamente o paradoxo que Benjamin encontra em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Aparentemente, como o título indica, tratam-se de técnicas de reprodução de obras já existentes, e Benjamin esboça uma rápida história dessas técnicas, desde a gravura até a fotografia. Mas muito rapidamente o leitor descobre que o núcleo daquilo que podemos considerar como sendo o texto em estética mais importante do século XX é o cinema. Ora, a finalidade do cinema é só raramente a da reprodução de obras de arte. Há, portanto, um enigma: por que esse grande texto sobre o cinema afirma se interessar pela reprodução das obras de arte? É que o cinema, primeira indústria cultural, não distingue produção e reprodução; não mais que a imagem hoje, dita de síntese.
De uma maneira geral, para Benjamin, a reprodução, sob as mais variadas formas, é a condição de possibilidade da produção artística. De onde a igualdade: reprodução = produção. Ou, para retomar a terminologia dos Fragmentos (1915-1921) de estética, a imaginação artística não consiste na formatação de uma matéria disforme, segundo o esquema clássico, hilemórfico, herdado de Aristóteles; mas sim em uma deformação, dissolvente, de uma forma que já existia. Ele utiliza o termo Entstaltung[4]para falar desse processo, que não é de destruição. O que implica que se deveria entender de outra forma, por exemplo, o termo ruinificação, o tema da ruína, seja no propósito de sua crítica em seu estudo das Afinidades eletivas de Goethe; ou em particular na Origem do drama barroco alemão, porque a ruinificação, como a dissolução, libera uma aparição, esse termo cuja importância central na Teoria estética de Adorno nos é conhecida.
Partindo disso, podemos enunciar duas teses:
1. a cultura e, portanto, a indústria cultural, seriam abordadas afirmativamente por Benjamin, e isso contra a vulgata adorno-heideggeriana que é consenso hoje. A título de brevidade, diremos que, para ele, a cultura (a coleção, por exemplo) é a condição das artes;
2. a questão da técnica – dos objetos tećnicos, desses objetos técnicos para os quais não há propriamente conceitos, que poderíamos chamar de mediums ou suportes e para os quais eu preferiria o termo aparelhos -, essa questão não é abordada a partir do hilemorfismo. Esse termo está no núcleo da crítica feita por Simondon a Aristóteles (1)[5], que interpreta a universalidade desse esquema que transforma todo artefato em duas realidades separadas, chamadas de matéria e forma, a partir da relação interindividual do trabalho e, no fundo, a partir da dominação do mestre que concede ordem – e, portanto, forma – sobre o escravo, reduzido ele mesmo a uma espécie de matéria. Benjamin, por meio de análises provenientes da estética, cria uma teoria do meio [milieu] dos aparelhos que não é hilemórfica e que abre perspectivas imensas, que talvez vão até mais longe que aquelas de Simondon (2)[6].
Que é, então, esse meio [milieu] transindividual a que pertencem fotografia e cinema?
Esse meio não é estritamente aquele das artes. A originalidade de Benjamin – assim como a de Rancière, aliás, apesar de em um outro plano – consiste em desobstruir uma outra ordem de realidade que não a das artes;: essa outra ordem – transindividual, anterior à dissociação entre singularidade qualquer, de um lado, e comunidade, de outro – não é diretamente cognoscível como o seria um objeto para um sujeito. Essas são categorias que Benjamin ignora de maneira maravilhosa.
Por um lado, esse meio é irredutível à oposição – ela sim realmente moderna – entre sujeito e objeto, o que não impede Rancière de atribuí-la a ele; por outrolado, esse meio é, acima de tudo, aquilo que permite, através de sua anterioridade, a constituição do objeto em geral, assim como aquela do sujeito, tomado como singularidade individual ou como comunidade. Mesmo que se possa extrair consequências psicologizantes (“a estética do choque”) e sociologizantes (o surgimento da “norma” coletiva) das análises benjaminianas dos aparelhos culturais, isso não é o essencial.
Consequentemente, se Benjamin se interessa pelas artes, particularmente desde os Fragmentos, é porque quer fundar uma estética que podemos chamar de minimalista, como se a ênfase devesse ser colocada em outro lugar, nas “técnicas de reprodução”, por exemplo, na imagem reproduzida, e não na pintura stricto sensu (como aparição), pintura essa que é reduzida na análise a três elementos constitutivos: a linha gráfica (o desenho), a cor (entendida como mancha) e o nome que configura a mancha de cor lhe impondo uma forma. Em Benjamin, é o nome que formata à medida em que encurrala uma cor. O nome é algo completamente diferente de uma Ideia, um eîdos; ele é, acima de tudo, um ato criador dentro de uma estética que provém da Gênese.
A análise passa, portanto, por algo anterior a uma estética tradicional,; como fará, em outro sentido, seu contemporâneo Panofsky procurando dar um estatuto à perspectiva (A perspectiva como forma simbólica), antes de afundar-se numa iconologia que reduz as obras a um cenário imaginado.
Já na Tese III do texto em sua versão francesa, Benjamin escreve: “Ao longo de grandes períodos históricos modifica-se, com a totalidade do modo de existir da coletividade humana, também o modo de sua percepção. A maneira pela qual a percepção humana se organiza – o medium em que se realiza – não é determinada apenas pela natureza humana, mas também pelas circunstâncias históricas”[7]. Essa tese se apoia sobre os trabalhos de Riegl sobre a arte no Baixo Império Romano.
Portanto, é de um certo objeto técnico que se irá tratar aqui: do meio [milieu] ou medium à medida em que ele determina o modo de percepção das sociedades humanas, como faria uma fôrma. Vemos que Benjamin não se coloca a questão do uso desse objeto técnico que é o medium. Seria a questão do uso pertinente aqui? Teria isso um sentido de nos perguntarmos qual intencionalidade – suponhamos que coletiva – trabalhou para inventar um tal medium – como a fotografia – e em vista de que fins? Porque além disso seria necessário, regressivamente, que nos perguntássemos qual era o medium anterior que suportava essa intencionalidade coletiva etc.
Como Simondon irá salientar mais tarde em Do modo de existência dos objetos técnicos, a questão do uso não permite caracterizar a tecnicidade de um objeto técnico, a fortiori acrescentaremos, de mediums ou aparelhos como a fotografia ou o cinema, que teriam marcado a época e o mundo [auront fait époque et monde] ao fornecer bases à sensibilidade comum. O empreendimento benjaminiano não é antropológico, como ainda seria em Leroi-Gourhan, onde uma ferramenta será considerada como prolongamento de uma função humana. Como o empreendimento benjaminiano não é antropológico, ele não é economicista, mesmo sendo esses aparelhos de reprodução responsáveis por bagunçar a economia das imagens ou do som, e assim a economia como um todo (a digitalização [numérisation][8]). É nesse nível que Adorno, com sua crítica da indústria cultural, antropologiza a difícil questão do medium e do meio dos aparelhos culturais.
Se quisermos pensar esses aparelhos em si mesmos, não podemos reduzi-los a um uso, porque no final das contas aparelhos muito diferentes podem servir para a mesma coisa (de onde a extraordinária confusão que reina no campo da midialogia inaugurado por Debray, porque no fundo tudo pode servir para a comunicação). É preciso que coloquemos a questão de seu funcionamento, que não é aquela do uso: estudar a lógica própria dos aparelhos culturais enquanto objetos técnicos. É justamente a esse tipo de análise que se presta Benjamin, tanto na Pequena história da fotografia quando em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. A problemática do funcionamento abre uma outra série de questões: não mais se a foto e o cinema servem como arte, e finalmente se eles são artes plenas; mas sim sobre sua gênese, sua linhagem filogenética, sobre como explicar o advento desses aparelhos.
Ao ler Benjamin – à medida em que ele retoma os historiadores desses aparelhos, como G. Freund no que diz respeito à fotografia – assistimos a um processo de concretização, de transdução: esses aparelhos, para retomar termos hegelianos, passam do abstrato para o concreto; e essa concretização se aproxima daquela do ser vivo, mas não a ponto de podermos dizer deles que eles poderiam tornar-se vivos, a não ser se como fantasmas, mitos, autômatos, totalmente encerrados sobre si mesmos. Esses aparelhos passam por um estado de imperfeição (pense nos múltiplos dispositivos que precederam o cinema, que Th. Giraud descreve em Cinéma et technologie [Cinema e tecnologia]), por um estado de contradição interna e de heterogeneidade de seus componentes para, tendencialmente, ir em direção àquilo que, no limite, poderia ser radicalmente autônomo.
Esse é o motivo pelo qual, quando Benjamin distingue diversos estados da técnica, ele caracteriza o segundo estado da técnica – depois do primeiro estruturado pelo culto mágico (3)[9] – como se ela – se tornando, nesse momento, natureza – pudesse impor à humanidade a sua própria necessidade (de onde o mito do autômato maquínico irrompendo de forma terrorista quando da guerra mundial), implicando que o funcionamento dos objetos técnicos deveria se aproximar daquele dos seres vivos. E é por isso, finalmente, que ele chega à hipótese de uma reconciliação da técnica e da natureza.
Como veremos, é o cinema que, do simples fato de seu funcionamento, terá por consequência aclimatar a técnica “alienante” que teria podido chegar até a sua autonomização mítica. Benjamin, partindo de uma interpretação mítica da alienação maquínica (Chaplin: Tempos modernos) confunde, então, sob o título da segunda técnica, um aperfeiçoamento que que vai no sentido da autonomização e uma antropologização das máquinas. Mas se quisermos entender o advento do cinema, precisamos pensar o aperfeiçoamento dos objetos técnicos para além do mito do autômato devorador da humanidade.
É que por si mesmos, seguindo a lei do aperfeiçoamento, os objetos técnicos em geral vão em direção a uma integração e uma coesão recíproca de todos os seus componentes que os aproximam da autonomia estrita do ser vivo. Segue-se disso que eles cessam de ser dependentes de seu meio associado anterior para gerar seu próprio meio associado: Benjamin, num primeiro momento, descreve um mundo fordista de trabalhadores submetidos à ditadura do teste escolar, esportivo e universitário. Mas o funcionamento da câmera ligada ao microfone faz surgir um reino das aparências absolutamente novo: os trabalhadores aprendem a fornecer aparências através de si mesmos, que são então automaticamente captadas. E a lógica de funcionamento do aparelho se torna reflexiva: é, por sua vez, a testabilidade daquilo que só era testado a serviço de sua máquina que se torna um objeto em si: do fato da autonomização técnica do aparelho audiovisual, a testabilidade de cada um se autonomiza.
O modelo benjaminiano é, sem dúvidas, O homem da câmera de Vertov, mesmo que ele não cite esse filme. Essa produção da testabilidade terá consequências marcantes: ela engendrará a desidentificação social e política daquele que passa na frente da câmera, o que resultará, então, no verdadeiro reino do anônimo e do qualquer, o ator de cinema não tendo nada a ver com o ator de teatro. A testabilidade do teste emancipará o trabalhador do reino da máquina; ele não será mais gravado trabalhando, mas sim desempenhando seu próprio papel, fornecendo as aparências que ele decidir fornecer. Essa introdução massiva do jogo não poderia ter consequências políticas?
É preciso ser anti-técnico como Rancière para não ver que o chamado regime representativo da arte, que supunha a narração ordenada da vida de de alguns heróis (drama épico), só pode sucumbir diante da irrupção de uma testabilidade que só conhece um valor: o jogo. Porque há mesmo um mundo entre essas duas temporalidades: aquela do sacrifício e da representação onde de uma vez só tudo se joga e aquela do cinema onde uma cena, podendo sempre ser regravada o número de vezes que for necessário, uma vez não é nada, e nada de único subsiste: a unicidade não é mais um valor, não mais, evidentemente, que o aqui-e-agora da aura. Benjamin resume sua tese em linhas centrais: “Fazer da monstruosa aparelhagem técnica de nossos tempos o objeto da enervação humana – é essa a tarefa histórica em cujo serviço o cinema tem seu verdadeiro sentido”[10].
O cinema seria, então, a verdade da enervação. A melhor maneira de pensarmos a enervação é o cinema. Por um lado, portanto, o cinema, assim como qualquer objeto técnico, iria no sentido da individualização e da concretização (é mesmo uma prótese magnífica a minúscula câmera digital enervando a visão e a memória); mas por outro, ele consistiria na resolução técnica de uma situação aparentemente restrita à economia e à política: aquela da alienação “maquínica”.
Do simples fato de seu aperfeiçoamento, é a alienação devida à segunda técnica que se reduziria tendencialmente. “O cinema serve para exercitar o ser humano nas novas apercepções e reações necessárias para lidar com uma aparelhagem cujo papel na sua vida aumenta quase diariamente”[11]. Ora, a chave desse exercício não consiste em um trabalho, cujo modelo permanece inevitavelmente a relação senhor-escravo, mas um outro modo de apreensão, não formatador no sentido do hilemorfismo, não focalizante: a distração.
A enervação dos novos objetos técnicos não impõe uma disciplina, mas sim uma percepção quase-tátil, onde a ludicidade da distração prevalece tanto sobre a negatividade do trabalho quanto sobre a aprendizagem institucionalizada. A distração se opõe ao conhecimento objetivo, necessariamente atento.
Visto que o cinema não é um trabalho, ele não entra nas relações interindividuais. Ele se desenrola em um outro nível, no nível de um meio transindividual. Esse é o motivo pelo qual nós nos movimentamos em um meio que podemos chamar, pejorativamente, de “espetacular”, como o fazem os situacionistas; não somente porque exercemos constantemente nosso direito político de nos fornecer aparências a nós mesmos, mas porque as coletividades, assim como as individualidades quaisquer, só se configuram cinematograficamente. O título do livro de Frodon – La projection nationale [A projeção nacional] – visa esse estado de coisas, exceto pelo fato de que ele o limita ao cinema hollywoodiano em suas relações com a constituição da sociedade estadunidense.
Precisemos a noção de enervação. É que, como o pensa Benjamin na esteira de Fiedler, a mão que produz um objeto visível que se destaca dela (um obrado [oeuvré], depois uma obra [oeuvre]) enerva a visão. É que a visão por si só – assim como a consciência interna ou o sonho – não tem a capacidade de fornecer forma, porque ela – assim como eles – se dá em fluxos ininterruptos e incessantes em que não se pode apoderar de nada: o fluxo contínuo da consciência íntima – assim como o fluxo exterior das sensações -, por mais que possua todas as qualidades sensíveis possíveis, não retém nada. Fiedler chegará a escrever que se a mão não obrasse [oeuvrait] constituindo uma coisa visível, não haveria nada a se ver com a visão ela mesma, para a qual tudo passa. É, portanto, a mão que torna visível e, acrescentará Klee, nisso discípulo de Fiedler, é a arte que faz ver.
Essa conexão entre a mão e a visão não é possível com outro órgão dos sentidos: a mão não pode enervar o paladar porque ela não pode obrar [oeuvrer] o paladar: ela não pode fazer o paladar sentir gosto pelo intermediário de um obrado [oeuvré] destacado dele, enquanto que pode fazer ver o visível destacado da visão mesma. Aquilo que comemos ou tocamos não pode se separar do tato ou do paladar em si mesmos. É a mão que destaca a coisa do aqui-e-agora e da imediatidade da apreensão sensível.
É em Fiedler que Benjamin (4)[12] irá encontrar o termo enervação, que denota mais que uma amplificação romântica de um órgão dos sentidos. Entre a mão e a visão, há um salto qualitativo: uma reflexividade (a obra é uma coisa onde o visível é em segundo grau), concreta (a obra tangível se torna arquivo aberto) e uma autonomização daquilo que se destaca de sua origem, passando a funcionar para-si e a gerar efeitos em um meio outro: o público. Esse público que ela institui, visto que ele não existe antes dela. O obrado [l’oeuvré] se tornará o arquivo verdadeiro do sentido. Isso que chamamos de cultura.
É que os objetos técnicos – a técnica em geral – foram concebidos muito cedo por Benjamin em termos de enervação que prolonga a vida à medida em que se integram a ela: “a humanidade pode integrar, graças à técnica, além da totalidade do ser vivo, uma parte da natureza: o inanimado, as plantas e os animas, lá onde se constitui a unidade de suas vidas” (Fragments, p. 87). Assim, as obras tem isso a mais que os objetos técnicos: na reflexividade, o que está em jogo é o salto da técnica para a poesia. Aquilo que Benjamin chama propriamente de mimesis e que, para não confundir com uma representação que seria somente a retomada de algo que já existia, poderíamos chamar de mimesis originária. É de fato a mesma mão, escreve ele, que flecha um animal e que desenha sua silhueta sobre a parede, é o mesmo corpo que marcha e dança; a dança é, então, mimesis da marcha. Essa retomada de si não é uma representação no sentido banal, mas um salto qualitativo.
Diremos, para terminar, tratando agora do meio transindividual, que o cinema, enervando as técnicas, integrando-as à humanidade, expõe-nas à medida em que as poetiza, e fazendo isso as torna pensáveis, pois elas não são mais necessariamente objetiváveis. De fato, as técnicas, que no fundo são a condição do conhecimento objetivante, não podem ser verdadeiramente conhecidas. O meio transindividual é condenado a uma espécie de estado quase numenal. A tarefa histórica do cinema, poderia escrever Benjamin, consiste então em nos sensibilizar poeticamente a um meio crescente que necessariamente tem a sua própria linha de fuga, a qual não é nem humana e nem inumana. É ainda o caso da mimesis originária.
[1] RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. 2.ed. São Paulo: EXO Experimental org.; Editora 34, 2009. pp. 45-46.
[2] RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução de Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 80.
[3] idem. pp. 81-82.
[4] Deformação, desfiguração, desarranjo. (N.T.)
[5] No original constam números entre parênteses que provavelmente fazem referência a notas no fim do texto; no entanto, não constam essas notas. (N.T.)
[6] Ver nota 5. (N.T.)
[7] Adaptado, de modo a melhor corresponder com o texto de Déotte, de: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Tradução de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2019.
[8] Literalmente, o processo pelo qual uma imagem ou sinal analógico é transformado em código digital. (N.T.)
[9] Ver nota 5. (N.T.)
[10] idem, p. 108.
[11] idem, p. 108.
[12] Ver nota 5. (N.T.)
Tradução: Pedro Naccarato
Revisão: Marcus Apolinário
Originalmente publicado em: 25 de janeiro de 2006.