Nas semanas que antecedem a eleição presidencial dos EUA, diferentes tipos de resistência populista estão formando gradualmente uma frente unida: “Nos estágios finais da eleição presidencial dos EUA, grupos milicianos armados estão forjando alianças com teóricos da conspiração e grupos antivacina que afirmam que a pandemia de coronavírus é uma farsa, intensificando o medo de que problemas possam estar se formando antes do dia das eleições. Os principais defensores da propaganda antigovernamental e anticientífica se reuniram no fim de semana, acompanhados pelo fundador de um dos maiores grupos milicianos”

Aqui, três dimensões estão operando: teorias da conspiração (como a d QAnon), negacionistas do COVID-19 e milícias violentas. Estas dimensões são normalmente inconsistentes e relativamente independentes: há teorias da conspiração que não negam a realidade da pandemia, mas a veem como uma conspiração (chinesa) para destruir os EUA; podem haver negacionistas do COVID-19 que não veem uma conspiração por trás da pandemia, mas negam a seriedade da ameaça (Agamben), etc. Mas agora, as três dimensões estão juntas se movendo. Milícias violentas se legitimam como defensoras da liberdade, que está sendo ameaçada por uma conspiração envolvendo o deep state [1] contra a reeleição de Trump, e veem a pandemia como um elemento chave dessa conspiração; se Trump perder a reeleição, isso será o resultado dessa conspiração, o que legitimaria a resistência violenta à derrota de Trump.

Em outubro de 2020, o FBI revelou que um grupo miliciano de direita planejava sequestrar a governadora de Michigan, Gretchen Whitmer, de sua casa, e, após isso, a levar para um lugar seguro em Wisconsin. Lá, ela deveria ser submetida a uma espécie de “julgamento” popular por sua “traição”: como governadora, ela impôs duras restrições para conter as infecções por COVID-19 e, com isso, de acordo com o grupo miliciano, ela violou as liberdades garantidas pela Constituição dos Estados Unidos. Esse plano não lembra o sequestro político mais famoso da Europa? Em 1978, uma figura chave do establishment político italiano, que evocou a possibilidade da grande coalizão entre democratas-cristãos e comunistas, foi sequestrada pelas Brigadas Vermelhas, levada a julgamento por um tribunal popular e morta a tiros…

Angela Nagle também estava certa aqui: a nova direita populista está tomando conta de procedimentos que décadas atrás eram claramente identificados como pertencentes a grupos “terroristas” de extrema-esquerda. Isso, é claro, não quer dizer que os dois “extremos” de alguma forma coincidam: não temos um centro simetricamente estável flanqueado pelos dois extremos. O antagonismo básico é aquele entre o establishment e a esquerda, enquanto que o “extremismo” violento da direita é uma reação de pânico desencadeada quando o Centro é ameaçado. Isso ficou claro no último debate presidencial quando Trump acusou Biden de apoiar o “Saúde para todos”, dizendo: “Biden concordou com Sanders”, ao que Biden respondeu: “eu venci Bernie Sanders”. A mensagem dessa resposta é clara: Biden é um Trump com um rosto humano, e, apesar de suas oposições, eles possuem o mesmo inimigo. Esse é o oportunismo liberal em seu pior: renunciar ao “extremismo” de esquerda com medo de assustar o Centro.

O próprio Trump joga de forma ambígua aqui. Quando é questionado a respeito dos grupos radicais de direita que propagam violência e teorias da conspiração, ele está disposto a formalmente se distanciar desses aspectos problemáticos, enquanto enaltece a postura patriótica dos grupos em geral. Essa distância que ele toma é vazia, é claro, é um artifício puramente retórico: espera-se que o grupo aja silenciosamente de acordo com os discursos de Trump que estão repletos de apelos implícitos à violência. Quando Trump ataca constantemente a suposta violência esquerdista, ele o faz em termos que causam divisão e chamam à violência.

A esse respeito, a resposta de Trump, quando questionado sobre a violência propagada e praticada pelos Proud Boys, é exemplar:

“Poucos minutos após o presidente dos EUA, Donald Trump, dizer aos Proud Boys, um grupo de extrema-direita com membros que defendem a supremacia branca, para ‘recuar e aguardar’, em rede nacional em 29 de setembro de 2020, membros deste grupo exclusivamente masculino acessaram redes sociais marginais para celebrar o que eles consideraram um momento ‘histórico’ por sua pressão ideológica contra os esquerdistas.” [2]

Este é (se eu puder ser perdoado pelo uso dessa expressão, que é bem problemática aqui) Trump em seu melhor: ele de fato diz a eles para recuar, ou seja, para conter a violência, mas ele adiciona “e aguardar”, ou seja, preparem-se – para fazer o quê? A implicação é clara e inequívoca: estejam prontos para praticar violência se Trump perder a eleição. Mesmo que o perigo de uma verdadeira guerra civil explodir nos EUA seja provavelmente nulo, o próprio fato dessa possibilidade ser amplamente comentada é significativa.

E não é apenas os EUA que estão se movendo nesta direção. Vamos dar uma olhada nas reportagens da mídia europeia. Na Polônia, figuras públicas liberais reclamam que estão se tornando espectadores de um desmantelamento da democracia, e o mesmo está acontecendo na Hungria… Até num nível mais geral, uma certa tensão que é imanente à própria noção de democracia parlamentar está ganhando visibilidade hoje. Democracia significa duas coisas: o “poder do povo” (a vontade substancial da maioria deve se expressar no Estado) e confiança no mecanismo eleitoral (não importa quantas manipulações e mentiras tenham ocorrido, uma vez que os números são contados, o resultado é aceito por todos os lados). Foi isso o que aconteceu quando Al Gore concedeu a derrota a Bush, embora mais pessoas tivessem votado nele e a contagem na Flórida tenha sido muito problemática. A confiança no procedimento formal é o que dá estabilidade à democracia parlamentar.

Os problemas surgem quando essas duas dimensões ficam fora de sincronia, e tanto a esquerda quanto a direita frequentemente exigem que a vontade substancial do povo prevaleça sobre as formalidades eleitorais. Em certo sentido, eles estão certos: o mecanismo de representação democrática não é realmente neutro:

“Se a democracia é uma representação, ela representa antes de tudo o sistema geral, que sustenta sua forma. Em outras palavras, a democracia eleitoral é apenas representativa na medida em que é primeiro a representação consensual do capitalismo, que hoje é renomeada como ‘economia de mercado'”.[3]

Deve-se seguir essas linhas no sentido mais estritamente formal. No nível empírico, é claro, a democracia liberal multipartidária “representa” – espelha, registra, mede – a dispersão quantitativa das diferentes opiniões do povo, o que pensam sobre os programas propostos pelos partidos e sobre seus candidatos, etc. No entanto, antes deste nível empírico e em um sentido muito mais radical, a própria forma de democracia liberal multipartidária “representa” – instancia – uma certa visão da sociedade, da política, e do papel dos indivíduos nela inseridos: a política é organizada em partidos que competem nas eleições para que possam exercer controle sobre o aparatos legislativos e executivos do Estado, etc. Deve-se estar sempre ciente de que esta estrutura nunca é neutra, na medida em que privilegia determinados valores e práticas.

Essa não-neutralidade se torna palpável nos momentos de crise ou indiferença, quando experimentamos a inabilidade do sistema democrático em registrar o que as pessoas efetivamente querem ou pensam. A incapacidade em jogo aqui é sinalizada por fenômenos anômalos como as eleições no Reino Unido de 2005: apesar da crescente impopularidade de Tony Blair (ele era constantemente eleito a pessoa mais impopular do Reino Unido), não havia como esse descontentamento com Blair encontrar uma expressão politicamente eficaz. Obviamente, algo estava muito errado neste caso. Não era que as pessoas “não soubessem o que queriam”, mas sim que a resignação cínica os impedia de agir de acordo com isso, de modo que o resultado foi uma estranha lacuna entre o que as pessoas pensavam e como agiam (votavam).

Há mais ou menos um ano atrás, a mesma lacuna explodiu de forma ainda mais brutal com a ascensão dos coletes amarelos na França. Eles articularam claramente um sentimento que era impossível de traduzir ou transpor em termos de políticas de representação institucional, e é por isso que no momento em que Macron convidou seus representantes para dialogar e os desafiou a formular suas reclamações num programa político claro, seus sentimentos específicos evaporaram. A mesma coisa não aconteceu com o Podemos na Espanha? No momento em que aceitaram participar da política partidária e entraram no governo, se tornaram indistinguíveis dos socialistas – mais um sinal de que a democracia representativa não funciona bem.

Em suma, a crise da democracia liberal durou bem mais que uma década, e a pandemia de COVID-19 só a fez explodir para além de um certo nível. A solução certamente não deve ser buscada em algum tipo de democracia “mais verdadeira”, que será mais inclusiva para todas as minorias. A própria estrutura da democracia liberal terá que ser deixada para trás, o que é exatamente o que os liberais mais temem. O caminho para mudança verdadeira só é aberto quando perdemos as esperanças em uma mudança no interior do sistema. Se isso parece muito “radical”, lembre-se que, hoje, nosso capitalismo já está mudando, embora no sentido contrário.

A violência direta é, via de regra, não revolucionária, mas conservadora, uma reação a uma ameaça de mudança mais fundamental. Quando um sistema está em crise, ele começa a quebrar as suas próprias regras. Hannah Arendt disse que, em geral, surtos de violência não são a causa de mudança numa sociedade, mas sim as dores de parto de uma nova sociedade em uma sociedade cujo prazo já expirou devido às suas próprias contradições. Lembremos que Arendt disse isso em sua polêmica contra Mao, que disse “o poder cresce a partir do cano de uma arma”. Arendt qualifica isso como uma convicção “inteiramente não marxista” e afirma que, para Marx, explosões violentas são como “as dores do parto que precedem, mas que obviamente não causam, o evento do nascimento orgânico”. Em linhas gerais, concordo com ela, mas eu adicionaria que nunca haverá uma transferência completamente pacífica de poder sem “dores de parto” violentas: sempre haverá momentos de tensão quando as regras do diálogo e das mudanças democráticas forem suspensas.

Hoje, porém, o agente de tais tensões é a direita, razão pela qual, paradoxalmente, a tarefa da esquerda é, agora, como Alexandria Ocasio-Cortez colocou, salvar nossa democracia “burguesa” enquanto o centro liberal está muito fraco e indeciso para fazê-lo. Isto está em contradição com o fato de que a esquerda deve ir para além da democracia parlamentar? Não: como Trump demonstra, a contradição está na própria forma democrática, de modo que a única maneira de salvar o que vale a pena ser salvo na democracia liberal é indo para além dela. E, vice versa, quando a violência da direita está em escalada, a única forma de ir além da democracia liberal é ser mais fiel a ela do que os próprios liberais democratas. Isso é o que é claramente sinalizado pelo bem-sucedido retorno democrático ao poder do partido de Morales na Bolívia, um dos poucos pontos luminosos em nossa paisagem devastada.


Autor: Slavoj Žižek

Data de Publicação do Original: 26/10/2020

Tradutor: Marcus Apolinário

Revisores: Moisés João Rech e Régis de Melo Alves

Link do Original: https://thephilosophicalsalon.com/the-limits-of-liberal-democracy/



[1] O conceito de Deep State busca expressar a ideia de um “Estado dentro do Estado”, ou seja, frações da burocracia estatal que operam à revelia de quem esteja no poder

[2] https://www.nytimes.com/2020/09/29/us/trump-proud-boys-biden.html

[3] Alain Badiou, De quoi Sarkozy est-il le nom?, Paris: Editions Lignes 2007, p. 42.

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