Nesta semana, começou a circular para debate na sociedade e no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição cujo fim é acabar com a escala seis por um, jornada de trabalho em que o trabalhador trabalha seis dias na semana e descansa um. Tal jornada tem amparo na Consolidação das Leis do Trabalho dos anos 1940 que, à época, significou algum avanço quando regulamentou a jornada de trabalho e estabeleceu as 44 horas semanais que ainda hoje vigoram. Como se sabe, nesses últimos oitenta anos as forças produtivas não cessaram de se desenvolver e a produtividade do trabalho, por sua vez, não parou de aumentar. A grande contradição é que as relações sociais de produção ou permaneceram inalteradas ou retrocederam, avançaram contra os trabalhadores – como atesta a dita Reforma Trabalhista de 2017. Diante da absoluta necessidade do capital em lutar contra a tendência à queda da taxa de lucro, a exploração cada vez maior do trabalho somada ao desenvolvimento incessante das forças produtivas fez com que a legislação parasse no tempo (no melhor dos casos). Só que este cenário é e foi catastrófico para a classe trabalhadora como um todo, pois aumentar a produtividade do trabalho, sob o capitalismo, nunca significou diminuição da jornada de trabalho, nem a ampliação da inclusão de camadas sociais no regime de produção e reprodução da vida em sociedade. Muito pelo contrário. O desenvolvimento técnico, no regime de acumulação capitalista, sempre gerou desemprego e superexploração da força de trabalho. Aliás, quando se fala no cenário de desemprego estrutural nada mais quer se dizer do que crise de superprodução da mercadoria força de trabalho. Quer dizer, produz-se mais trabalhadores do que o mercado consegue absorver. O que isso pode significar? Como é possível que uma sociedade se estruture em termos nos quais sua própria atividade vital de produção e reprodução seja um problema?
A contradição insolúvel sob o capital é que, para manter o nível de acumulação, ele precisa do desenvolvimento técnico e do aumento da produtividade do trabalho, junto com a estabilidade e/ou a progressiva desregulamentação ou liberalização da força de trabalho. O caráter sem solução da equação é claro: se o capital tolera a progressão das relações sociais de produção de acordo com o desenvolvimento das forças produtivas e aceita a diminuição da jornada de trabalho de acordo com o aumento da produtividade justamente para que todos os trabalhadores possam trabalhar, não apenas ele dá um salto mortal em direção à queda da taxa de lucro como aumenta o poder do trabalho frente a si mesmo. Por outro lado, se o capital segue seu curso normal, o desemprego tende a crescer e o conjunto da força de trabalho passa a ter um contingente sobrante cada vez maior. Só que ao contrário das outras mercadorias, esta não é uma daquelas que se pode simplesmente atear fogo para controlar a inflação – embora isso não os impeça de tentar. Em um cenário de desemprego generalizado, pressionando os salários para baixo pela concorrência (muita oferta, pouca demanda), o aumento da produção fica inviável porque a sociedade não tem capacidade de consumo. Sem poder expandir a produção, a taxa de lucro fica novamente ameaçada e, então, abre-se nova temporada de caça ao progresso técnico que possibilitará corte de custos na produção do próximo ciclo, intensificando ainda mais o desemprego, enfraquecendo a capacidade social de consumo e empurrando o problema para frente. No melhor dos casos, o problema do futuro gera especulação sobre a capacidade de produção e promove a circulação do capital no setor financeiro.
Seja como for, a pauta da redução da jornada de trabalho para quatro dias semanais foi posta em debate. Embora ainda não tenha adquirido a forma propriamente de uma PEC e esteja circulando mais como uma sondagem para identificar sua plausibilidade, essa discussão já apresenta um saldo político positivo. Como se sabe, a direita saiu vitoriosa das últimas eleições municipais em praticamente todo o país. No entanto, a colocação dessa pauta pressiona justamente os candidatos desse campo político. Nos últimos dias, figuras como Nikolas Ferreira, o golden boy do reacionarismo brasileiro, Marco Feliciano e outros defensores do capital foram convocados pela população a se posicionar. Pela primeira vez em muito tempo as ditas forças progressistas conseguiram não só pautar o debate público, mas produzir um certo consenso entre os próprios trabalhadores, o que forçou a direita a sair da zona de conforto. Segundo pesquisas de opinião, algo em torno de 80% dos brasileiros dizem ser contra a escala 6 por 1 e a favor da redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais. Esses números repercutiram no Congresso Nacional e, das 171 assinaturas necessárias para que o projeto entre em tramitação, 134 já foram colhidas. Destas, mais de uma dezena de parlamentares dos partidos de direita já se posicionou a favor. Mesmo contrariados, é provável que ainda alguns deles se manifestem pela redução da jornada de trabalho.
Em termos econômicos, o fim da escala 6 por 1 aumentaria a demanda por trabalho sobretudo nas áreas em que ela é mais comum, como shoppings centers, supermercados e comércios em geral. Segundo consta em dados como o anuário de 2021 do ILAESE, a força de trabalho disponível ou a população economicamente ativa hoje no Brasil soma aproximadamente 110 milhões de trabalhadores, dos quais apenas aproximadamente 45 milhões estão formalmente empregados. Sem dúvidas, a redução da jornada de trabalho significaria a inclusão de parcela dos trabalhadores sobrantes à ativa. Embora haja a gritaria habitual do capital, se considerarmos a questão puramente de seu ponto de vista, a equação é positiva: o aumento do efetivo amplia o mercado consumidor e possibilita a expansão da produção, o que, por sua vez, garante novos ciclos de acumulação. Inclusive, a medida funciona como solução temporária para o problema da financeirização do capital que, tendo agora onde ser alocado, pode retornar ao setor produtivo. Contudo, o grande ouro da questão não está aí. Aliás, defender a redução da jornada de trabalho por esse prisma é naturalizar a exploração do capital. Isso para não dizer ainda das insuficiências da proposta: na medida em que quase dois terços da força de trabalho está excluída da produção e sobrevive apenas das transferências de valor (do consumo daqueles que estão de fato inseridos no ciclo produtivo), a redução da jornada para 36 horas semanais não dá conta do problema, é ainda muito tímida.
Entretanto, o grande mérito de pautarmos esse debate é que discutir publicamente a diminuição da jornada de trabalho representa um apelo à consciência dos trabalhadores enquanto trabalhadores e nesse sentido a extrema direita não tem muito a dizer – seu populismo moralista fica inoperante. Eles têm de ceder ou irem contra uma demanda que é também de seu próprio eleitorado. Quer dizer, já se ouve por aí alguns reacionários desesperados, como de praxe, dizendo que quem defende a redução da jornada de trabalho é preguiçoso, que os trabalhadores devem trabalhar até a exaustão, que só o trabalho dignifica, e toda essa ladainha conhecida há muito. Mas a inoperância desse discurso tem a ver com o seu avesso, muito bem conhecido para os trabalhadores: trabalhar só é bom para quem não o faz – ou, ao menos, para aqueles que o fazem para si mesmos. Em geral, trabalhar – isto é, garantir seus meios para sobreviver, para continuar existindo – é uma atividade que toma conta da vida inteira do trabalhador. Ele dorme não para fruir de seu descanso, para sonhar ou qualquer coisa do tipo, mas simplesmente para repor suas energias para poder trabalhar no dia seguinte. A mesma lógica se aplica, por exemplo, à alimentação e a outras necessidades básicas: elas são reduzidas a garantir a sobrevivência, funcionam como simples meio. Os próprios interesses do trabalhador são vinculados à necessidade de produzir valor. Seus estudos, seus hobbies, sua produção autodeterminada: tudo aquilo que não pode ser consumido pelo trabalho, que não gera valor, acaba ficando inviável e, mais cedo ou mais tarde, precisa ser excluído de sua atividade. Ou seja, no fundo, discutir a redução da jornada de trabalho é discutir a liberação da vida em relação ao trabalho; é colocar o trabalho, enquanto atividade que supre as necessidades de sobrevivência, enquanto um meio, no seu devido lugar. É negar a completa subsunção do conjunto de toda a atividade vital do ser humano à simples reprodução da existência. Mais do que isso, é também lutar pela possibilidade de que essa atividade vital, este algo que nos humaniza, não seja necessariamente vinculado à produção de valor: é lutar contra o embrutecimento e criar condições, ainda que mínimas, para algum enriquecimento da sensibilidade. Defender a redução da jornada de trabalho pelos motivos de que isso libertará o trabalhador para o ócio, para o lazer, para o prazer, ou mesmo para perseguir seus próprios interesses que, por (diversas) vezes, não estão vinculados a sua profissão, significa lutar pela criação de condições para a retomada de qualquer coisa como uma autodeterminação – ainda que em uma escala insuficiente diante do cenário atual.
Agora, para além do papo de estudante de filosofia, é preciso interpretar a situação enquanto um fato político: pela primeira vez em muito tempo, o dito campo progressista conseguiu colocar uma pauta e produzir algum consenso em torno dela. Isso nos diz muito sobre a potência que a discussão a respeito das condições de trabalho tem no campo da disputa política. Pelo menos em um primeiro momento, ela tem conseguido juntar trabalhadores de todos os campos ideológicos em torno de uma reivindicação comum – o que não é pouco. Mais do que isso, esse debate tem desarmado o campo da direita justamente por não estar baseado em questões de fundo moral, de certo e errado, de bem ou mal. Embora, é claro, os agentes do atraso tentem de toda forma levar a discussão para esse lado. O desafio, no entanto, para o campo progressista é conseguir transformar esse consenso inicial em mobilização, politização e organização. É evidente a importância de conseguirmos vencer uma batalha como essa, de impor e aprovar uma eventual PEC. Mas também é fundamental conseguir produzir, a partir dessa primeira agitação, alguma conscientização e organização, tanto quanto for possível, para que a energia política que aqui emerge, essa predisposição à transformação das bases da sociedade, não se dissipe antes mesmo de vir a gerar frutos. Mesmo que o eventual projeto de emenda não venha a ser aprovado, é preciso no mínimo algum saldo positivo, a saber, a politização do conjunto dos trabalhadores: nessa seara não é possível admitir espaço para cooptação, para capitulação em favor dos interesses do capital – é preciso que saibamos para que e contra quem nos levantamos em luta pela redução da jornada de trabalho.
Enfim, dia 15 de Novembro, próxima sexta-feira, acontecerá um ato nacional para reivindicar o fim da escala 6 por 1. Algumas novas lideranças da esquerda estão por trás da organização, tais como a deputada Erika Hilton (PSOL-SP) e o vereador Rick Azevedo (PSOL-RJ/ Movimento Vida Além do Trabalho). Aqui em São Paulo, o ato será na Avenida Paulista com concentração a partir das 9h. É preciso dar todo apoio à luta pela redução da jornada de trabalho e, de quebra, talvez recuperar um pouco o sentido de comemorarmos algo como uma Proclamação da República.
Jailson Ramos
Jailson Ramos é mestre em multimeios pelo IA/Unicamp.