Em cada morro uma história diferente
Chico Science
Que a política mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido.
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
É espantosa (ou não) a maneira como o filme Marighella foi recepcionado pela crítica alemã, o que põe em xeque a falta de compreensão da materialidade tal como é por parte de alguns alemães, que insistem em permanecer presos a uma espécie de estetização vazia de conteúdo que tende a romantizar o horror, onde o que deve ser observado e levado em consideração na crítica – por seu caráter brutal e destrutivo – é deixado a segundo plano, reduzido a um problema de reconstrução de cena ou pela falta de tematizar os aspectos contraditórios entre os que se organizaram em plena juventude degradada no contexto da ditadura militar brasileira.
Dentre os jornais alemães que compartilharam de críticas feitas ao filme de Wagner Moura em sua estreia como diretor, aqui me detenho a do jornal berlinense TAZ (Die Tageszeitung) “A guerrilha sempre tem razão”. Nele a crítica aponta para algo que me pareceu espantoso no que diz respeito a estética do filme: “O sistema de segurança brasileiro de então, de fato em parte fascista, é extensivamente exibido na figura do agente assassino Lúcio, e a reconstrução de cenas de tortura ultrapassa os limites do cinematograficamente suportável. A violência institucional obtusa e de fato existente não precisa ser exibida de forma tão naturalista e duradoura como foi feito neste filme”. Isso para dizer que o filme possui a pretensão de criar um monumento para Marighella ao excluir as contradições existentes por parte da esquerda de então, sendo a sua intenção apenas a de “desabonar” a direita. Desta forma, para a crítica aqui referenciada, a estética de Marighella estaria revelando “um corte significativo na mentalidade do populismo de esquerda na América Latina e como este, hoje, ajeita a história a seu gosto”.
A frase que aqui destaco chama atenção em sentido da crítica se posicionar de forma tão distante do material histórico brasileiro a ponto de se incomodar com as cenas de violência institucional reconstruídas no filme por serem duradouras dentro do que é cinematograficamente suportável – e só isso. Em contraponto, é importante levar em consideração que a obra cinematográfica apresenta a sua excelência estética por mostrar de forma crua, com toda aspereza e frivolidade que exige a violência tal como constituída em solo brasileiro. Uma estética que não foge do que foram as lutas inglórias, de obscuros personagens, onde a coragem daqueles que assumiram uma posição de enfrentamento são sementes espalhadas nesse chão […] dos humilhados e ofendidos/Explorados e oprimidos/ Que tentaram encontrar a solução [1]Gonzaguinha – Pequena Memória para um tempo sem Memória. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SJ_1pjnW2Lg. Marighella, em toda sua carga estética aparece como resgate da memória de um tempo sem memória, de um passado que ainda é presente [2]Ver ensaio de Paulo Arantes: “1964: o ano que não terminou” que integra a coletânea organizada por Edson Teles e Vladmir Safatle “O que resta da ditadura – a exceção brasileira.”: “Um … Continue reading – no qual 28 pessoas são aniquiladas por essa mesma selvageria de indivíduos grotescos que a figura do agente Lúcio representa – com toda a auto destrutividade de uma aparência “patriota” que pulsa diante da morte dos seus, aquela do banditismo por pura maldade. É a mesma violência cotidiana que assola a Cidade Maravilhosa entre aqueles que são considerados supérfluos para a reprodução da sociedade produtora de mercadorias.
Desta maneira, o filme cumpre em recordar [3]Aqui vale evocar Herbert Marcuse (1981, p. 200) e a importância atribuída a mais nobre tarefa do pensamento, qual seja, a recordação como veículo de libertação: “Essa capacidade para … Continue reading quem foi o baiano Carlos Marighella, um homem de seu tempo e para além dele. Bem como a violência entre torturas e mais formas de repressão, enraizadas ainda hoje – o que acaba por denunciar o fracasso de nossa “redemocratização” – dado que a reprodução dessa violência ocorre como um tiro que é dado covardemente por detrás das costas: não sabemos, mas agimos como indivíduos livres e iguais enquanto o real perigo nos mata dia após dia.
Jade Amorim
Jade Amorim é estudante de graduação em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Integrante e uma das fundadoras da revista Zero à Esquerda.
13 de maio, 2021.
↑1 | Gonzaguinha – Pequena Memória para um tempo sem Memória. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SJ_1pjnW2Lg |
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↑2 | Ver ensaio de Paulo Arantes: “1964: o ano que não terminou” que integra a coletânea organizada por Edson Teles e Vladmir Safatle “O que resta da ditadura – a exceção brasileira.”: “Um tempo morto, esse em que a ditadura não acaba nunca de passar. É assim que Tales (Ab’Saber) interpreta a agonia do poeta, jornalista e conselheiro político Paulo Martins, que emenda o fecho na abertura de Terra em Transe: uma queda infinita do personagem no branco e no vazio final que nunca acaba. O mundo começou a cair no Brasil em 1964 e continuou caindo para sempre, salvo para quem se iludiu enquanto despencava”, pp. 259-260. E mais: “[…] Assim sendo, poderemos ser mais específicos na pergunta de fundo: o que resta da ditadura na inovadora Constituição dita Cidadã de 1988? Na opinião de um especialista em instituições coercitivas, Jorge Zaverucha, pelo menos no que se refere às cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, políticas militares e segurança pública – convenhamos que não é pouca coisa –, a Carta outorgada pela ditadura em 1967, bem como sua emenda de 1969, simplesmente continua em vigor. Simples assim” pp. 263-264. Hoje são 57 anos do golpe, as comemorações continuam e não param por aí. |
↑3 | Aqui vale evocar Herbert Marcuse (1981, p. 200) e a importância atribuída a mais nobre tarefa do pensamento, qual seja, a recordação como veículo de libertação: “Essa capacidade para esquecer – que em si mesmo já é o resultado de uma longa e terrível educação pela experiência – é um requisito indispensável da higiene mental e física, sem o que a vida civilizada seria insuportável. Mas é também a faculdade mental que sustenta a capacidade de submissão e renúncia. Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecerem. Esse perdão reproduz as condições que reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram – sem derrotar essas forças. As feridas que saram com o tempo são também as feridas que contêm o veneno. Contra essa rendição ao tempo, o reinvestimento da recordação em seus direitos, como um veículo de libertação, é uma das mais nobres tarefas do pensamento.” |