Cuidar dos outros é amplamente considerado a única maneira de salvar a espécie humana. É no amor altruísta pelos outros que somos propensos a ver a garantia de nossa humanidade. Certamente, esta intuição é verídica, mas a afirmação oposta não é menos verdadeira. O amor incorpora em si humanidade, mas a tragédia da raça humana é que inumanidade não é o oposto de amor, e sim seu inalienável lado avesso.

O regime nazista de Hitler e o regime fascista italiano tornaram-se um símbolo comum da inumanidade e a corporificação do mal supremo. É inconveniente reconhecer que não é menos razoável considerá-los uma corporificação do amor e devoção aos povos alemão e italiano, e à humanidade em geral. Benedetto Croce, o renomado filósofo italiano, não foi sarcástico quando escreveu em 1924 que “O coração do fascismo é o amor pela Itália”.

Michel Foucault chama atenção ao fato de que dois fenômenos aparentemente opostos — a forma extrema de racismo contida na ideologia da Alemanha Nazista, e o sistema público de saúde, considerado hoje um indicador de progresso social — possuem uma fonte em comum. Tanto a eugenia como o sistema mencionado são enraizados na biologização e medicalização do corpo, as quais pressupõem diferenciar os processos corporais em normais e patológicos, sendo aquelas primeiras empreendidas sob o pretexto de assistência médica.

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Sob o arcabouço ideológico do Nazismo, os Judeus foram apresentados como uma danosa patologia da qual a humanidade deveria ser resgatada. Em seu testamento, Hitler implora ao povo alemão para “resistir sem piedade à envenenadora de todas as nações, a Judaria internacional”. Considerando-se que Hitler sinceramente almejava salvar a humanidade curando-a de uma patologia mortal — não seria esta uma manifestação de sua nobre humanidade?

Tal interpretação das intenções hitlerianas não justifica de modo algum as consequências do regime Nazista, mas estas também não cancelam sua humanidade, nem revelam a “verdade maligna” de suas intenções. Estas permanecem não-malignas por natureza, mas, simultaneamente, suas consequências representam a mais extrema manifestação do mal.

Assim como foi aplicado no presente contexto, isto significa que não há quaisquer garantias finais para nos assegurar de que algo hoje visto por nós como uma manifestação do que é mais humano e progressivo (por exemplo, preocupar-se com a saúde mental, feminismo e proteção animal) não se tornará, no fim, o mal mais absoluto.

Não apenas a nível intersocial, mas também no interpessoal, amor e cuidado também já carregam a ameaça do mal. Slavoj Žižek sugere que em sua expressão mais derradeira, o amor é mais um mal que um bem. O amor pressupõe seletividade, a razão pela qual, em seu alicerce, ele é “um ato extremamente cruel.” O amor, por definição, não pode ser amor pela humanidade. Amar é preferir o objeto de amor aos outros.

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O medo de Žižek encontrou confirmação em pesquisas científicas recentes. A ocitocina é conhecida como o “hormônio do cuidado”, também referido como o “hormônio do amor” pois promove sentimentos amorosos e ligação social, além de exercer um papel-chave no estabelecimento da ligação mãe-filho. Este hormônio tem sido há muito considerado uma potencial panaceia que salvará a raça humana — era pressuposto que precisaríamos apenas aumentar os níveis de ocitocina em humanos para tornar o mundo um paraíso onde todos se amariam.

A implementação deste plano tão otimista foi interrompida pela descoberta do lado avesso do hormônio do amor. Descobriu-se que este fomenta distinções entre membros endogrupais (nós) e os exogrupais (eles), e põe em movimento tanto um favoritismo direcionado aos membros endogrupais como preconceito contra aqueles em exogrupos. Correspondentemente, a ocitocina desencadeia agressão defensiva contra outsiders que possam ameaçar o grupo social de um indivíduo.

O fortalecimento da conexão emocional com uma certa pessoa ou grupo social implica predisposição a defendê-los agressivamente contra os que parecerem ser um perigo àqueles. Por exemplo, este princípio está em jogo sempre que uma guerra é declarada, já que ela é usualmente articulada como medida preventiva contra uma ameaça. O outro exemplo é comportamento agressivo contra a comunidade LGBT, pois seus valores representam um perigo ao coletivo de pessoas que compartilham valores tradicionais.

Foi também revelado que altos níveis de ocitocina podem estar associados com violência relacional e talvez seja um fator implicado no comportamento abusivo. O hormônio é ligado à manutenção de relacionamentos por manter os amados por perto. Por conseguinte, se uma pessoa tem necessidade excessiva por um objeto de apego, isto pode provocar controle ou dominação do parceiro com abuso físico e emocional.

A esperança ingênua de que a humanidade pode purificar-se de todo mal e manter apenas a bondade é vã. O mal não é o oposto da bondade, bem mais frequentemente aquele é um nível excessivamente radical desta última.

O mais sincero amor e desejo de cuidar dos outros não garante humanidade, mas simultaneamente são estes aquilo que também torna nosso mundo adequado para a existência. A raça humana está em uma situação desesperadora — o que pode destruí-la, é também uma condição para sua sobrevivência.

Talvez a própria consciência dessa desesperança seja nossa única esperança.

Julie Reshe, PhD.

Traduzido por Eliel Micmás [CTP].


Original:
https://medium.com/@juliereshe/julie-reshe-fascism-is-love-75cb054c3801

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