Nota inicial: A tradução do ensaio do escritor e crítico literário argentino, Ricardo Piglia, em nosso idioma, se mostra oportuna para os estudos literários e de crítica marxista. Não apenas pela profundidade teórica, mas também pela intensidade com que expõe a atividade literária enquanto práxis. Sua releitura de Brecht, ao público não especializado, é uma porta de entrada para leitores sem muita instrução teórica e uma instrução teórica para não leitores: a literatura, sob o complexo social da produção e reprodução espiritual (cultural), vinculada às vicissitudes da luta de classes, aparece no sentido de que “a cultura constitui dentro de uma sociedade de classes um privilégio e um instrumento de dominação”, remontando as principais ideias do dramaturgo alemão, que, nesse sentido, não é uma premissa estanque, já que trata-se de arrancar do capitalismo uma nova forma de conceber a literatura, isto é, decompor sua própria desaparição.
Na seguinte tradução, mantivemos o título original da revista Los Libros, e não o título disponível online (“Notas sobre Brecht”), pois pensamos que a melhor opção se justifica na exposição do conteúdo.
1.
A aparição dos trabalhos inéditos de B. Brecht sobre a literatura e arte é, sem dúvida, um dos acontecimentos mais importantes da crítica marxista desde a publicação dos “Cadernos do cárcere”, de Antonio Gramsci. No centro de sua reflexão se encontrava a tentativa de fundar na prática uma teoria marxista da produção literária, que fosse capaz de inscrever os resultados deste trabalho específico no espaço da luta de classes. Escritos ao longo de trinta anos, estes ensaios [de Brecht] devem ser lidos como uma síntese teórica da prática brechtiana. (“Temos tirado ideias da prática, na realidade, as temos submetidas à prática”). Único critério de verdade, para Brecht a prática deve ser o fundamento último de qualquer trabalho cultural: uma crítica materialista se funda, justamente, no “controle” que, em um campo à primeira vista, tão “espiritual”, deve exercer a experiência concreta para evitar o risco de uma especulação idealista (“Tudo o que se diz sobre a cultura sem ter em conta a prática não é mais que uma ideia e tem, portanto, que ser comprovada na prática”.) Ao mesmo tempo, estes ensaios vêm afirmar o caráter produtivo da teoria e seu lugar privilegiado no sistema brechtiano: Brecht não concebe o trabalho artístico sem o “controle” de uma crítica científica que funcione como momento interno da produção e elimine toda tentação empirista. Desta maneira, sua atividade teórica é, de fato, uma resposta concreta ao mito reacionário do “artista” intuitivo e “selvagem”, “criador inspirado” que cultiva a ignorância para melhor respaldar o caráter “mágico” de sua obra” (“Geralmente o artista tem medo de perder sua originalidade em contato com a ciência. Tem um medo de que não poderá seguir compondo sem “saber demais”.) Desmontar essa crença romântica do mistério da “criação artística” é, para Brecht, a primeira tarefa que se deve realizar uma crítica materialista.
2.
De início, Brecht desloca a discussão tradicional sobre literatura redefinindo seu lugar no campo intelectual: “Permita que lhe diga que a luta entre sua geração e a minha (escreveu a Thomas Mann) não será uma questão de critérios, mas sim de luta pelos meios de produção. Um exemplo: na polêmica teremos que lutar para conseguir o posto que vocês ocupam, não na história cultural alemã, mas em um periódico [revista] de 200 mil leitores. Outro exemplo: no teatro, teremos que lutar contra as opiniões de Ibsen e os modelos engessados de Hebbel, não contra aquela gente que não quer nos passar os teatros, os atores”. Escrito em 1926, este texto condensa as tarefas da crítica brechtiana: análises de fundamento material das ideologias literárias, luta pela posse dos meios de produção [culturais] que sustentam e impõem as ideias (estéticas) dominantes. Trabalhando na mesma linha de Gramsci, que pensa a “organização material da cultura”, Brecht enxerga na literatura um campo onde a luta de classes não é uma simples luta de “ideias”, senão uma luta material pelo controle dos aparelhos ideológicos que regulam a produção material. “Os grandes aparelhos culturais dirigem o trabalho intelectual e determinam seu valor”.
Em uma sociedade dividida em classes existem várias “estéticas” possíveis, distintos interesses culturais: as classes dominantes impõem seus “critérios”, não por sua qualidade universal, não porque têm os meios materiais que permitem difundir seus códigos de classe como verdades universais. “A classe que dispõe desses meios de produção material – havia escrito Marx – dispõe ao mesmo tempo dos meios de produção espirituais”. No mesmo sentido, para Brecht, os valores e gostos dominantes não são outra coisa que a expressão ideal (neste caso, a estética, as relações sociais dominantes. Ou melhor: são as relações materiais transformadas em “ideias” (estéticas). Visto assim, não é casual que Brecht afirme que a burguesia também “é o modo de produção da glória”.
3.
Para Brecht, a cultura constitui dentro de uma sociedade de classes um privilégio e um instrumento de dominação: através dos aparelhos ideológicos da cultura se transforma em um sistema material que reproduz – e afirma – em um nível específico as condições sociais de produção. Ou para dizer, em suas palavras: “Através dos aparelhos a sociedade absorve tudo o que necessita para autorreproduzir-se”[1]. Deste modo, a literatura cumpre uma função orgânica no campo ideológico: difunde e “estetiza” os modos de vida, os costumes, os usos sociais, as crenças que ajudam a sustentar – em um nível particular – a hegemonia das classes dominantes.
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No entanto, é precisamente nesta função orgânica da literatura que Brecht (com o manejo transparente da dialética que caracteriza seu pensamento) encontra o lado, por assim dizer, “positivo” da situação. Para ele, este processo “vem lançar luz sobre a maneira como hoje as coisas espirituais se convertem em materiais”. O modo de produção capitalista transforma todas as relações “espirituais” (também as estéticas, e entre elas, as do escritor burguês com sua classe) em laços econômicos. A função social da arte é definida não pelas ilusões ideológicas dos artistas, mas pela produção de mercadorias. A partir daí Brecht faz ver (cf. seu excelente trabalho: “A ópera dos três vinténs, uma experiência sociológica”) a contradição antagônica entre as ideologias estéticas (criador original, artista “livre”, o gênio “inspirado” e o grande homem como realização do humanismo burguês, etc.) e os interesses econômicos que decidem a produção e a circulação da arte no sistema capitalista. Esse processo de mercantilização estética aparece como uma crítica prática à “ideia de um fenômeno inviolável chamado arte, que se alimenta do humano”. O que Brecht assinala é que os aparelhos culturais não estão ao serviço da arte, nem sequer ao serviço exclusivo de certa ideologia artística: sua função é orgânica porque são os encarregados de subordinar a arte e a ideologia às necessidades objetivas da reprodução capitalista. O momento “positivo” da situação está em que, de fato, se apaga a aura romântica, espiritualizada que rodeia e encobre o trabalho artístico. A ilusão de um artista livre e desinteressado que elabora “espontaneamente” suas obras para um público de iguais está sujeita à prova de realidade dos aparelhos culturais. “A cultura burguesa não é o que ela pensa da prática burguesa”.
5.
Assim, Brecht destaca o caráter sintomático da cultura burguesa que não é (e nem não pode ser) consciente de sua própria articulação material. Dito de outra maneira: para Brecht, os aparelhos culturais (“na época do grande capital com costumes idealistas”) só podem produzir sintomas. Um exemplo disto é a crítica brechtiana ao papel da crítica (“culinária”). Reguladores do mercado específico das disciplinas artísticas, os críticos burgueses são simples administradores da arte: em última instância sua função é a de aumentar ou diminuir as vendas e manter em funcionamento a concorrência. No fundo, os críticos trabalham todos com uma ficção teórica de um sistema de valores independente do dinheiro. Para Brecht o mais “refinado” crítico de arte no capitalismo é o dinheiro, e o “gosto” estético não é outra coisa que uma sublimação da capacidade aquisitiva (“Sem conhecimento técnico o docemente insípido “Filho perdido de Bosch”, que produziu 385.000 francos, não vale nem 3,50 francos. Mas quem pode obter essa erudição técnica? Simplesmente é muito cara”). A crítica é uma mercadoria imaterial, destinada a um mercado específico de mercadorias imateriais que circulam pelos canais concretos dos aparelhos culturais. Neste processo, sua função ideológica está controlada pelas necessidades da produção capitalista: distrai o público das condições materiais da prática artística para melhor impor a ilusão de uma arte “livre” e acima das classes[2]. Neste nível o “gosto” estético é um modo de sublimar as relações materiais, ou melhor: um clichê ideológico destinado a resolver imaginário a contradição antagônica entre a arte e o capitalismo. “Não reconhecem o gosto como mercadoria, ou meio de combate de uma determinada classe, mas o erige como absoluto”.
6.
A crítica brechtiana se insere no centro mesmo dessa contradição entre capitalismo e arte (algo que, aliás, foi mencionado por Marx) sem escolher nenhum dos dois termos. O que se realiza é uma dupla crítica: por um lado, mostra que as condições da economia burguesa exigem que as relações sociais (também as relações sociais estéticas) se ocultem sob o véu do mercado: destaca o papel orgânico dos aparelhos culturais neste processo e analisa a literatura como um campo material da luta de classes. Por outro lado, assinala que a produção literária deve ser redefinida constantemente sem admitir uma “essência” da arte. Esquiva-se, deste modo, o erro idealista de certa crítica de esquerda – à maneira de Adorno e a Escola de Frankfurt – que em sua rejeição da “indústria cultural” recaia em um humanismo fatalista e aristocrático. “O conceito de arte contém algo como uma hostilidade contra os aparelhos. O puramente “humano” (= artístico) é imaginado nos aparelhos, de uma forma que, portanto, não existe”. Para Brecht, trata-se de evitar a ilusão idealista de conceber a arte como uma qualidade “humana” imutável e a-histórica, que é preciso preservar da degradação que se submete a voracidade dos aparelhos culturais. “Se o conceito de obra de arte já não pode ser mantido para a coisa que resulta de transformar na obra em mercadoria, então temos que suprimir esse conceito com cautela, mas com ousadia, a não ser que queiramos liquidar conjuntamente a função dessa coisa, pois tem que passar por essa fase”.
Neste nível, a contribuição de Brecht para uma teoria marxista da produção artística é fundamental. Aprofundando as análises de Tinianov (cf. “Teoria da literatura dos formalistas russos”, Ed. Signos p. 89) redefine, a partir desta situação objetiva, a função social da arte. Para Brecht, a prática estética deve revolucionar constantemente suas próprias convenções do mesmo modo que na economia o desenvolvimento das forças produtivas revoluciona constantemente os meios de produção. Nesta direção, Brecht define a literatura “como uma prática social humana, com propriedades específicas e uma história própria, apesar de toda uma prática entre outras, ligada a outras”. É na relação entre essa prática específica e as outras práticas sociais (econômica, ideológica, política) que Brecht encontra historicamente a mudança de função da arte. Como havia proposto Walter Benjamin: “Em vez de se perguntar qual é a posição de uma obra em relação às condições de produção de uma época, há que perguntar qual é a sua posição no interior dessas condições de produção. Esta pergunta enfrenta diretamente a função que tem uma obra no interior dessas relações de produção” (Walter Benjamin, “Essaies sur Bertolt Brecht”, Maspero, 1969, p. 110). A atividade artística atua no interior de relações históricas determinadas e está ligada na prática dominante em cada formação social (por exemplo, no feudalismo com a ideologia religiosa). A função depende da articulação com essa prática dominante e depois com o resto das práticas e finalmente com a sua própria história. Este tecido de relações é o que modifica a função da literatura no interior das relações sociais.
7.
Nessa base, Brecht define os critérios que permitem pensar a nova função da literatura: “a nova produção” (como a chama Brecht) deve encontrar seu lugar na sociedade a partir da ligação com uma prática fundamental: a luta de classes. Neste sentido, para Brecht, o significado ideológico da arte, o modo de produção, as formas de distribuição e de consumo, o público, os protocolos de leitura, lugar do escritor nessa prática, ou seja, o sistema literário no seu conjunto é determinado pelos interesses de classe, e são os interesses de classe que em cada caso decidem que coisa é a arte e a quem (para que) “serve”.
8.
Brecht parafraseia Lenin: “Nós derivamos nossa estética e nossa moral das necessidades de nossas lutas”.
9.
Ao mesmo tempo, a prática literária define sua intervenção na luta de classes a partir desta nova função.
Neste sentido é preciso mudar de lugar o debate sobre o papel do escritor e suas tarefas específicas na luta ideológica. “No que diz respeito à sua posição perante a sociedade, a maioria dos nossos escritores são vítimas de um erro muito confortável: pensam que são independentes. Tudo isso provém do fato de não saberem em que consiste a suas funções de trabalhadores intelectuais, despojados dos seus meios de produção. (Como aparentemente não os necessitam, pensam que não estão despojados desses meios). Esquecem que entre os seus meios de produção se encontram não só as máquinas impressoras e as que fabricam papel, a imprensa, o teatro, as sociedades literárias, as livrarias, etc., que simplesmente exigem matérias-primas e, portanto, trabalho intelectual, mas também uma certa quantidade de opiniões, etc.”. (B. Brecht: “As tarefas da nova crítica”, Crisis n° 22, fev., 1975 p. 49).
Brecht não pensa a função social do escritor isolada – ou melhor, considerando separadamente seu trabalho individual: trata de definir o lugar desse trabalho individual no interior de uma produção social chamada “literatura”. Deste modo, volta a descartar a ideologia romântica que fazer do criador solitário (marginal, maldito, incompreendido) ao imaginário “destruidor” dos valores burgueses. Crítico materialista, Brecht analisa essa ilusão ideológica como um efeito do sistema. Frente ao avanço da mercantilização estética, o escritor nega o processo em bloco: se retira, tende a considerar-se cada vez mais separado diante da sociedade, se pensa como indivíduo marginalizado, ou seja, livre de qualquer laço social. Invertendo a ideologia burguesa sem negá-la, se refugia em uma liberdade ideal: desligado imaginariamente das relações sociais, se julga todas as qualidades “humanas”, “expressivas” de sua obra. Brecht rechaça esta robinsonada literária[2]: nega que a “separação poética” preserve e assegure a literatura no capitalismo. É para a burguesia que a “poesia” nasce contra a produção material: deste modo, a crítica brechtiana envolve um campo mais amplo e aponta a lógica mesma de apropriação burguesa da riqueza “espiritual” como momento produtivo. O que Brecht faz ver é que o capitalismo contribui não apenas ao fundamento individualista que permite a admiração de talentos “originais” e a ideologia do gênio, mas os fundamentos econômicos que identificam valor e raridade.
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Brecht realiza um duplo trabalho crítico: por um lado, desmonta a economia compensatória da ideologia da literatura que nos poderes “ilimitados” do criador sublima a realidade do trabalho assalariado; por outro lado, define o lugar do escritor não pelo que este pensa de sua prática, mas pela posição dessa prática no interior das relações de produção. “A fuga dos meios de produção de mãos do produtor significa a proletarização do produtor: o intelectual, tal como o operário, não tem para pôr no processo de produção mais do que a sua força de trabalho, mas a sua força, isto é: ele mesmo, não é nada fora dele, e exatamente como no caso do operário, necessita progressivamente dos meios de produção para o aproveitamento de sua força. A socialização dos meios de produção é para a arte uma questão vital”.
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Assim, a literatura é atravessada especificamente pela luta de classes. O escritor deve ligar sua prática à [prática] revolucionária das massas (não por abstratos imperativos morais, mas) porque esta luta, na medida em que questiona o poder das classes dominantes, é a única que, em última instância, pode também resolver os problemas do escritor em relação às condições materiais da sua produção. Para isso, é preciso descartar a ideia de uma resistência solitária (e entre solitários) que exaspera o momento subjetivo e moralizante da “eleição” e do “compromisso”[3] A ênfase na individualidade do escritor, o sentido de eficácia isolada, de cada obra em particular, significa o abandono do momento social e objetivo da prática literária. Para Brecht, ao contrário, trata-se de definir o escritor como um produtor despojado de seus meios de produção cujas tarefas (políticas, ideológicas, literárias) são também sociais e estão vinculadas organicamente com a luta revolucionária.
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Por outro lado, a literatura é uma frente particular da luta de classes: também no interior desse campo é preciso definir uma posição revolucionária. Um exemplo disso é a teoria do efeito de distanciamento: o teatro trava uma luta específica contra os modos de representação cristalizados na cena burguesa (identificação, ilusão, mimese, etc.). Segundo Brecht, atuar politicamente significa, também, criar uma nova linguagem artística, rejeitar os pressupostos da retórica burguesa (“A nova produção não pretende satisfazer a velha estética, mas destruí-la”). A prática brechtiana tem sempre o seu momento semântico: desmontar as convenções e os códigos linguísticos impostos como naturais e eternos pelas classes dominantes é um modo de fazer ver a coerência entre um sistema de sinais artísticos e um sistema ideológico de comportamentos e de juízos. Para Brecht, modificar os procedimentos que regulam a produção artística é um modo de intervir especificamente – a nível da linguagem e dos usos sociais da significação – na luta de classes.
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É a partir dessa concepção de conjunto da prática literária que devemos ler as posições de Brecht em sua polêmica com Georg Lukács, em “Sobre o problema do realismo”. O debate se desenvolveu durante a década de 30 nas páginas da revista “Das Wort” (publicada em alemão, em Moscou); as intervenções de Brecht mantiveram-se em sua maior parte inéditas, e são hoje um dos centros de interesse fundamental de seus ensaios (ver “Sobre o realismo”, pp. 207 a 283). No debate, Lukács acusa Brecht de formalista, e afirma que o realismo socialista deve usar a forma “racional” do grande romance burguês do XIX (Balzac, Tolstoi), rejeitar as inovações “decadentes” dos escritores de vanguarda (Kafka, Joyce, etc.). Lukács resume sua posição em uma disjunção imperiosa: Kafka ou Thomas Mann?, e Brecht opta, sem hesitar, por Kafka. Não se trata para ele de um problema de gosto pessoal ou de “modernidade”: o que está em jogo é uma questão clássica no marxismo. Para dizê-lo, com uma fórmula leninista: a que herança renunciamos? Ou seja, qual deve ser a relação da crítica marxista com o passado cultural e as tradições artísticas? “Aqui se realizam lutas, nem sempre relevos. A posição pela posse da “herança” não é um processo sem luta”. Segundo Brecht, Lukács defende uma concepção organicista, não dialética da história da literatura: sem levar em conta a contradição, os momentos de ruptura, concebe um progresso “harmônico” e linear dos gêneros e os estilos. Por outro lado, ao fundar o realismo socialista[4] sobre o modelo do romance burguês, Lukács desloca para a literatura uma concepção reformista: o socialismo (neste caso, literário) nasce de reformar, melhorar, fazer progredir o modo de produção burguês numa continuidade natural sem lutas nem fracturas. (“O novo, escreve Brecht, deve superar o velho, mas deve ter o velho superado em si mesmo, deve aboli-lo, conservando-o. Há coisas novas, mas essas surgem da luta com o velho, não sem ele, não do ar livre”). Ao considerar universal, imutável, “racional” uma forma literária histórica e de classe, Lukács reproduz de fato a mistificação que Marx critica nos economistas burgueses: a impossibilidade de pensar para além do horizonte ideológico de uma classe, para a qual o seu modo de produção é “natural”, eterno, “racional”. “Para um militante da luta de classes, como Lukács, representa um recorte surpreendente da história eliminar quase completamente da história da literatura a luta de classes”.
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Para Brecht as técnicas, os estilos, os procedimentos, não têm uma eficácia própria e duradoura fora de sua função histórica e de classe. Definir o realismo significa subordinar essa definição ao lugar que a prática literária tem no interior de relações sociais determinadas: o verosímil que exclui ou retém o “efeito realista” oscila segundo as classes e as épocas. O que era realista em um momento, pode deixar de sê-lo, o que não era realista na época pode ser para outra, diz Brecht, que não só escolhe Kafka contra Thomas Mann, mas considera realista Shelley ou Swift, mas não Sholojov.
“É importante para a prática do escritor realista que a teoria literária compreenda o realismo em relação às suas diferentes funções sociais”.
15.
Por outro lado, Brecht opõe-se frontalmente à concepção estética de Lukács que pensa a literatura a partir da distinção idealista entre forma e conteúdo. Brecht nega essa diferença: define a literatura em termos de produção e, portanto, não fala de formas dentro de técnicas, de instrumentos de trabalho, de meios de produção. Nesse diapasão, realiza outra de suas grandes contribuições à crítica marxista. Segundo Brecht, um meio de produção é um corte transversal na definição das artes de uma época: não a música, a literatura ou o teatro, mas um certo modo de produzir um determinado efeito estético: por exemplo, o sistema dodecafônico, o monólogo interior, ou o efeito de distanciamento. (“Um certo humor não é somente o produto de circunstâncias materiais mas também um meio de produção”, diz falando do efeito de distanciamento, p. 116). Um meio de produção tampouco é um gênero ou uma forma, mas um conjunto de procedimentos, ou melhores técnicas. (“Tais inovações – Joyce, Kafka, Döblin – devem ser explicadas como práticas técnicas, não só como formas de expressão de ingênuos”, p. 208) Como a literatura é sempre pensada em termos de produção, as inovações dos escritores de vanguarda não são (como para Lukács) “irracionais”, arbitrárias: Brecht considera o meio expressivo como língua, e não como fala, ou seja, a técnica literária não como ato de criação individual, mas como um momento objetivo, ligado ao desenvolvimento das forças produtivas. (“Nestes trabalhos, disse referindo-se a Joyce, estão também representadas em certa medida forças produtivas”, p. 267). Para Brecht a ciência e a técnica influem diretamente neste processo e servem de ponte entre a prática estética e as forças produtivas. Basta ver o modo em que (seguindo aqui Walter Benjamin) pensa a influência dos meios de mídia ou dos métodos de reprodução mecânica, da psicanálise, ou da dialética materialista no desenvolvimento da produção artística. Um exemplo pode ser sua opinião sobre o capítulo de Molly Bloom no Ulysses. “O capítulo dificilmente teria sido escrito sem Freud. As reprovações que o autor recolheu foram as mesmas que sofreu Freud em seu dia. Choviam: pornografia, prazer mórbido na sordidez, a valorização excessiva de tudo quanto acontece do umbigo para baixo e assim sucessivamente. Surpreendentemente, se uniram também a essa loucura alguns marxistas que acrescentaram com repugnância a expressão pequeno burguês. Como meio técnico o monólogo interior foi rejeitado, foi chamado formalista. Nunca compreendi o motivo”, p. 221).
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Essa distinta concepção da prática literária é central na polêmica [entre Lukács e Brecht]; ao negar a oposição forma/conteúdo, Brecht desloca a discussão e concentra sua crítica no seguinte sentido: o formalista é Lukács, diz, que esquece a luta de classes, e define o realismo por suas características formais. Para Brecht, o realismo não é um simples método de composição, “não é uma questão de formas”: é uma posição de classe.
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O realismo brechtiano combina diferentes técnicas e instrumentos de trabalho para produzir um efeito de realidade. Neste sentido, para Brecht, não é realista quem “reflete” a realidade (e, em seus ensaios, nunca fala da teoria do reflexo), mas quem é capaz de produzir outra realidade. (“Não sou realista, sou um materialista; eu escapo do realismo indo para a realidade”, dizia Eisestein, com palavras parecidas com as de Brecht).
Essa outra realidade é “artificial”, construída, pois tem leis próprias e exibe suas convenções. Essas leis, estas convenções estão determinadas por uma posição “realista” (ou seja, de classe) em relação ao funcionamento da realidade, às forças em luta, às tendências dominantes, etc. Neste processo, a categoria da contradição passa a ser o fundamental. Para Brecht, a literatura é uma prática da contradição: sua matéria-prima são as contradições, ou seja, em última instância, as realizações ideológicas contraditórias (jurídicas, religiosas, políticas, morais, literárias) de posições de classe determinadas. Ser realista é colocar essas contradições em cena, torná-las visíveis, “mostrar os antagonismos sociais sem solucioná-los”, destaca Brecht, (151). A função do realismo é fazer perguntas, criar interrogações, mostrar a lógica e os interesses de classe das posições em conflito sem resolver imaginariamente as contradições. “A dialética oferece a possibilidade de falar das duas classes sem renunciar à parcialidade, como vamos combater sem ela?” (p. 151).
Tradução: Wesley Sousa
Original disponível na Revista Los Libros, n° 40, 1975.
[1] Esta citação pertence a um dos ensaios de Brecht sobre teatro que foi traduzido por Adolfo Sánchez Vázquez, com título “Novidades formais e refuncionalização artística”, no volume coletivo “Estética e Marxismo”, México, ERA, 1970, p. 161. (Nota do autor)
[2] Termo que remete ao personagem “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe, onde um sujeito isolado, vivendo numa ilha, tudo faz para si, tudo produz e tudo vive, ou seja, um sujeito “descolado” das relações humanas. (Nota do tradutor)
[3] Brecht se opôs frontalmente ao subjetivismo voluntarista da teoria sartreana do compromisso. Daí o infeliz título com o qual foram traduzidos, na edição espanhola que comentamos, os “Ensaios sobre arte e literatura”. (Nota do autor)
[4] Por “realismo socialista”, aqui, não deve ser entendido como sinônimo de “realismo soviético”. O segundo, era o exato objetivo da crítica por Lukács ao falar de “realismo socialista”, do qual seria a postura crítica, sem cair nas antinomias burguesas das figuras literárias, ao passo que criticaria o “descritivismo de superfície” soviético.