Introdução

Patrick Murray

            Quem foi Hans-Jürgen Krahl? Como indica o capítulo de abertura de seu livro, Konstitution und Klassenkampf [Constituição e Luta de Classes], ele foi um estudante do sudeste da Alemanha cuja vida coincidiu, em grande parte, com aquela de toda a Nova Esquerda alemã. Nascido em um contexto social retrógrado, quase feudal, ele esteve inicialmente fascinado com a promessa de emancipação burguesa. Por isso, ele transitou da CDU [União Democrata Cristã] para a filosofia de Heidegger, para o positivismo lógico, até finalmente chegar ao marxismo da Nova Esquerda e a um ponto de vista revolucionário. Após um período de intenso envolvimento teórico e prático na política turbulenta do final dos anos 60, sua vida foi interrompida abruptamente em 1970, num acidente de carro – exatamente no momento do declínio político da Nova Esquerda.

            Os editores de suas notas, ensaios e discursos explicam a inclusão de “constituição” no título do livro (Constituição e Luta de Classes) da seguinte maneira: “este conceito, assim como o de ‘abstração’, expressa, como nenhum outro, a unidade e a diferença das condições reais e ideológicas da sociedade burguesa, torna-se a chave para as reflexões teóricas de Krahl”. A justaposição crítica de emancipação burguesa e luta da classe proletária no subtítulo (Sobre a dialética histórica entre emancipação burguesa e revolução proletária) encapsula tanto a história pessoal de Krahl quanto aquela da Nova Esquerda alemã.

            Numa nação onde a teoria e as organizações comunistas haviam sido praticamente erradicadas, tanto Krahl quanto a Nova Esquerda alemã se desenvolveram a partir das promessas não cumpridas da ideologia burguesa. A destruição de suas esperanças na emancipação universal burguesa — por fim desmascarada como ideologia de classe durante os anos 60 — constitui sua experiência definidora. Todos os escritos de Krahl estão centrados nessa questão.

            Krahl investigou a fundo a análise de Marx sobre a mercadoria e a circulação mercantil, na qual Marx adentra nas aparências burguesas de igualdade, revelando a exploração da classe trabalhadora. Isto o conduziu à percepção de que as estruturas jurídicas e políticas que moldam tal perspectiva burguesa da troca de equivalentes são instrumentos de violência de classe. Sem dúvida, a prática da política nas ruas facilitou esta percepção, e ampliou a discussão na Nova Esquerda sobre a legitimidade da violência. A Guerra do Vietnã os impulsionou a reconhecer a opressão aberta do terceiro mundo pelas nações capitalistas industrializadas, liderada pelos EUA. A partir da análise do processo de troca, mas também com base na experiência de estudantes de classe média, veio a rejeição à vida burguesa na rica Alemanha. O consumismo e a ameaça de fracasso econômico negavam as liberdades proclamadas pela burguesia progressista a tal ponto que nem mesmo a classe média poderia desfrutar delas.

            Esta manipulação e reificação que estruturam o capitalismo industrial avançado são tratadas por Krahl como a decadência irreversível do indivíduo burguês. Krahl herdou esta problemática da Escola de Frankfurt e, acima de tudo, de seu professor, Theodor Adorno. Professor e aluno, contudo, constataram este terrível fato moderno por caminhos historicamente distintos. Adorno sofreu a desintegração daquele indivíduo. Esta foi-lhe imposta forçadamente e ele, brilhantemente, observou as múltiplas facetas da decadência. Esta experiência pessoal constituiu a organização e o panorama de sua teoria crítica. Krahl compreendeu o escândalo da individualidade burguesa em sua prática política no SDS [Estudantes por uma Sociedade Democrática] de Frankfurt: “Esta decadência do indivíduo burguês é uma das bases mais fundamentais a partir das quais o movimento estudantil desenvolveu sua posição antiautoritária”.

            Este encontro de experiências formativas e contraditórias acerca da falência das promessas revolucionárias da burguesia, constitui o pano de fundo deste artigo, publicado por Krahl em 31 de agosto de 1969, na Frankfurter Rundschau, sobre a morte de Adorno. Permanece um dos melhores esboços de uma crítica da Nova Esquerda a Adorno e à maior parte da Escola de Frankfurt. A morte prematura de Krahl impediu uma elaboração plena de uma alternativa concreta, cujo cumprimento, desse modo, ainda continua uma tarefa teórica.


As contradições políticas na Teoria Crítica de Adorno [1]O presente texto foi publicado originalmente em 13 de agosto de 1969, na Frankfurter Rundschau, à guisa do falecimento de Adorno. Constitui um dos escritos da obra póstuma de Krahl, intitulada … Continue reading

Hans-Jürgen Krahl

            A biografia intelectual de Adorno, mesmo em suas abstrações mais estéticas, é marcada pela experiência do Fascismo. O modo pelo qual esta experiência é refletida — decifrando a partir das obras de arte a relação insolúvel entre crítica e sofrimento — constitui a afirmação intransigente da negação, ao mesmo tempo em que estabelece seus limites. A “vida danificada”, através da reflexão sobre a dominação fascista como fruto das catástrofes econômicas naturais do modo de produção capitalista, tem consciência de sua conexão com as contradições ideológicas do individualismo burguês, cuja decadência irreversível compreendeu; ao mesmo tempo, não consegue escapar delas. O terror fascista produz não apenas a compreensão da compulsividade hermética das sociedades altamente industrializadas, mas também viola a subjetividade do teórico e reforça as barreiras de classe contra sua capacidade cognitiva. Adorno expressa esta consciência do processo em sua “Introdução” a Minima Moralia: “A violência que me desterrara impediu-me ao mesmo tempo de conhecê-la plenamente. Eu ainda não me atribuía a cumplicidade em que incorre todo aquele que, em face do indizível que ocorria coletivamente, simplesmente fala do individual”.

            Parece que a crítica cortante de Adorno à existência ideológica do indivíduo burguês irresistivelmente o aprisionou em sua ruína. Mas isto significaria que Adorno nunca deixou realmente o isolamento que a emigração lhe impôs. O destino monádico do indivíduo isolado pelas leis de produção do trabalho abstrato se espelha em seu subjetivismo intelectual. É por isso que Adorno não foi capaz de traduzir sua compaixão particular pelos condenados da terra em um engajamento integral de sua teoria na libertação dos oprimidos.

            O insight sócio-teórico de Adorno, de que o renascimento do Nacional-Socialismo na democracia deveria ser considerado como potencialmente mais perigoso que as tendências fascistas contra a democracia, transformou seu medo crescente de uma estabilização fascista do capitalismo monopolista em uma ansiedade reacionária contra qualquer forma de resistência ativa a essas mesmas tendências do sistema.

            Ele compartilhava da consciência política ambivalente de muitos intelectuais críticos alemães que imagina que a ação socialista de esquerda, na verdade, só desencadearia o potencial do terror fascista de direita que combate. Consequentemente, qualquer práxis é denunciada a priori como ativismo cego, e a possibilidade da crítica política como tal é boicotada, isto é, a crítica que distinguiria entre uma práxis pré-revolucionária essencialmente correta e suas expressões infantis em movimentos revolucionários emergentes.

            Ao contrário do proletariado francês e de seus intelectuais políticos, a Alemanha carece de uma tradição contínua de resistência militante e, assim, das pré-condições históricas para uma discussão racional acerca da legitimidade histórica da militância. A dominação existente, a qual, de acordo com a própria análise de Adorno, impulsionou novas formas fascistas [Faschisierung] mesmo após Auschwitz, não poderia ser real, se as “armas da crítica” marxista não precisassem do suplemento de nenhuma “crítica das armas” proletária. Só então poderia a crítica ser a força vital teórica da revolução.

            Esta contradição objetiva na teoria de Adorno impulsionou o conflito aberto e transformou os estudantes socialistas em oponentes políticos de seu professor de filosofia. Independentemente do quanto Adorno vislumbrou a ideologia burguesa da busca desinteressada pela verdade como um fenômeno da troca mercantil, ele igualmente desconfiava de vestígios de luta política [Richtungskamof] no debate científico.

            Contudo, sua opção crítica — que, para alcançar a verdade, o pensamento teria que se orientar espontaneamente para uma realidade social praticamente mutável — perde seu caráter de vanguarda se não puder se definir também em termos de categorias organizacionais. O conceito dialético de negação de Adorno se afastou cada vez mais da necessidade histórica de um engajamento objetivo do pensamento, que estava presente na determinação específica de Horkheimer sobre a diferença entre teoria crítica e teoria tradicional, ao menos em sua defesa da “unidade dinâmica” entre o teórico e a classe dominada.

            Abstrair desses critérios acabou por levar Adorno, em seu conflito com o movimento estudantil, a uma cumplicidade fatal — que ele mesmo não compreendeu — com as forças dominantes. O problema do abstencionismo pessoal da práxis, de maneira alguma, foi a única questão envolvida na controvérsia, mas a incapacidade de Adorno de enfrentar o problema da organização implica uma inadequação objetiva em sua teoria, a qual, porém, presume a práxis social como uma categoria central na epistemologia e na teoria social.

            E, ainda assim, foi o pensamento de Adorno que apresentou aos estudantes politicamente conscientizados as categorias emancipatórias que revelam a dominação e que implicitamente [unausdrücklich] correspondem às condições históricas alteradas da revolução nas cidades – condições não mais determináveis por experiências pré-concebidas e não mediadas.

            A força da exposição de Adorno no nível micro desvelou, a partir da dialética entre produção de mercadorias e valor de troca, as categorias emancipatórias ocultas na crítica da economia política de Marx, cuja força como uma teoria revolucionária — isto é, uma teoria que afirma a construção da sociedade na perspectiva da mudança radical — foi, em sua maioria, esquecida pelos economistas marxistas contemporâneos. O pensamento de Adorno sobre a lógica essencial das categorias de reificação e fetichização, de mistificação e segunda natureza, deram continuidade à consciência emancipatória do Marxismo Ocidental dos anos 20 e 30, de Korsch e Lukács, de Horkheimer e Marcuse, constituída em oposição ao marxismo soviético oficial.

            Em sua crítica filosófica das ideologias do ser ontológico-fundamental e do factualismo positivista, Adorno decifrou a origem da identidade como a categoria dominante da esfera da circulação, cuja dialética legitimadora liberal da moralidade burguesa — a aparência da troca equivalente entre iguais possuidores de mercadorias — dissolveu-se há muito tempo.

            Mas, as mesmas ferramentas teóricas que permitiram a Adorno alcançar este insight sobre a totalidade social também o impediram de vislumbrar as possibilidades históricas de uma práxis libertadora.

            Em sua crítica da ideologia sobre a morte do indivíduo burguês, há sequelas de uma tristeza justificada. Mas, em seu pensamento, Adorno não conseguiu transcender imanentemente (no sentido hegeliano do termo) esta última posição burguesa radicalizada. Ele permaneceu transfixado por ela, com um olhar temeroso para o terrível passado — a consciência que sempre chega tarde demais a alguém que só começa a entender algo no final.

            A negação de Adorno da sociedade capitalista tardia permaneceu abstrata, fechando-se à necessidade da especificidade da negação determinada, isto é, a categoria dialética à qual ele mesmo sabia estar vinculado pela tradição de Hegel e Marx. Em sua última obra, Dialética Negativa, o conceito de práxis não é mais questionado nos termos da mudança social em suas formas históricas específicas, ou seja, as formas das relações burguesas e da organização proletária. O fenecimento da luta de classes é espelhado em sua teoria crítica como a degeneração da conceção materialista de história.

            Não obstante, em determinado momento foi de caráter programático para Horkheimer atribuir a teoria à práxis libertadora do proletariado, porém, a forma burguesa de organização da Teoria Crítica, mesmo assim, não conseguiu estabelecer congruência entre o programa e sua realização. O fato de que o movimento operário, primeiramente esmagado pelo fascismo, depois aparentemente integrado de modo irreversível pela reconstrução do capitalismo pós-guerra na Alemanha Ocidental, modificou o significado dos conceitos na Teoria Crítica. Eles necessariamente tiveram que perder sua especificidade, mas este processo de abstração ocorreu de forma cega.

            O historicismo de Heidegger como “concepção a-histórica de história” foi criticamente desafiado pela história material e concreta de Adorno, o qual, no entanto, afastou-se cada vez mais de seu conceito de práxis social; em sua última obra, Dialética Negativa, ele evaporou ao ponto de parecer ter sido assimilado pela pobreza transcendental da categoria de Heidegger.

            Certamente, em seu discurso para a Sociedade Sociológica Alemã, Adorno insistiu correta e enfaticamente na relevância do marxismo ortodoxo: as forças industriais de produção ainda estão organizadas de acordo com as relações capitalistas de produção, e a dominação política, antes e agora, está baseada na exploração econômica dos trabalhadores assalariados. Contudo, independentemente de até que ponto sua ortodoxia entrava em conflito com a sociologia oficial da Alemanha Ocidental, era inefetiva, uma vez que as formas categoriais não estavam relacionadas à história concreta.

            O progressivo processo de abstração do processo histórico transformou a Teoria Crítica de Adorno nas formas contemplativas e ilegítimas da teoria tradicional.

            A tradicionalização de seu pensamento torna sua teoria a voz da velha razão na história. No nível de seu pensamento, a dialética materialista das forças acorrentadas de produção é refletida no conceito de uma teoria inescapavelmente acorrentada à imanência de seus conceitos. “Se o momento de interpretar o mundo se foi, e se se tornou necessário mudá-lo, então a filosofia se vai… é o momento não para a Primeira Filosofia, mas para a última”. Esta última filosofia de Adorno não teve nem vontade, nem capacidade de deixar seu próprio ponto de partida.


Tradução: Talles Lopes
Revisão: Jade Amorim


References
1 O presente texto foi publicado originalmente em 13 de agosto de 1969, na Frankfurter Rundschau, à guisa do falecimento de Adorno. Constitui um dos escritos da obra póstuma de Krahl, intitulada Konstitution und Klassenkampf

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