Na medida em que ele deixa em silêncio o papel – chave da ciência moderna nos circuitos do capital, Saito pensa abstratamente no sentido hegeliano de abstrair ou ignorar circunstâncias concretas. E em nenhum lugar essa abstração é mais palpável do que sua afirmação de que o trabalho abstrato já existe em sociedades pré-modernas, que não é (como valor) uma forma puramente social, a qual emerge apenas através da troca de mercadorias. Ao fazer isso, Saito ignora o fato crucial de que a noção de trabalho abstrato de Marx pressupõe a ciência moderna, especialmente a termodinâmica do século XIX.

A fim de provar que o “trabalho abstrato é também um elemento material do processo de trabalho” (p. 109), Saito cita Marx: “Todo trabalho é um gasto da força de trabalho humana, no sentido fisiológico, e é nessa qualidade de ser trabalho humano igual ou abstrato, que forma o valor das mercadorias.” (p. 109). Mas se segue disso que o trabalho abstrato realmente é “um certo aspecto material da atividade humana, e nesse caso, o puro gasto fisiológico de trabalho” (p. 109)? Não seria, como Marx demonstrou em sua introdução aos Grundrisse, a própria abstração um fato social, o resultado de um processo social de abstração?

Embora a categoria simples pode ter existido historicamente antes da mais concreta, ela pode alcançar seu desenvolvimento completo (intensivo e extensivo) precisamente em uma forma combinada de sociedade, enquanto a categoria mais concreta foi mais profundamente desenvolvida em uma forma de sociedade menos desenvolvida. Trabalho parece uma categoria muito simples. A concepção de trabalho nessa forma geral – trabalho como tal – é imensuravelmente antiga. Nunca, quando é concebido economicamente nessa simplicidade, “trabalho” é uma categoria moderna como são as relações que criam essa simples abstração.[1]

O mesmo não se aplica para o trabalho abstrato? Quando Marx escreve que “ao comparar seus diferentes produtos entre si em troca como valores”, os indivíduos “igualam seus diferentes tipos de trabalho como trabalho humano”, ele não indica que diferentes tipos de trabalho são comparados apenas mediante a troca no mercado? Apenas em uma sociedade cujo metabolismo é regulado pela troca de mercadorias o “trabalho abstrato” é posto como tal, por si mesmo. Em uma sociedade capitalista, a sua “abstração” é um fato social: os trabalhadores recebem um salário por seu trabalho medido abstratamente. Saito afirma que o trabalho abstrato se refere ao que todo trabalho humano tem em comum, um puro dispêndio de energia fisiológica no tempo. Entretanto, será que isso não permanece uma “universalidade muda”, em tudo diferente de uma abstração real que marca o trabalho de forma imanente, tornando a distância entre o abstrato e o concreto uma parte da própria identidade real do trabalho?

O trabalho mais complexo conta apenas como trabalho simples intensificado, ou melhor, multiplicado, de forma que uma quantidade pequena de trabalho complexo é considerada igual a uma grande quantidade de trabalho simples. A experiência mostra que essa redução está constantemente sendo feita. Uma mercadoria pode ser o resultado do trabalho mais complicado, mas através de seu valor, é posta como igual ao produto do trabalho simples, consequentemente, representa apenas uma quantidade específica de trabalho simples. As várias proporções em que tipos diferentes de trabalho são reduzidas a trabalho simples, conforme sua unidade de é estabelecida por um processo social que ocorre pelas costas dos produtores; essas proporções, portanto, parecem aos produtores terem sido transmitidas pela tradição.[2]

O principal termo enigmático aqui é “experiência”. Como David Harvey notou em seu clássico comentário, “Marx nunca explica que ‘experiência’ ele tem em mente, tornando essa passagem muito controversa”.[3] O mínimo que se pode adicionar é que essa “experiência” tem de ser concebida como se referisse  a uma situação historicaricamente específica: não se trata apenas do que se considera como trabalho simples, mas trata-se de que  a própria prática de reduzir o trabalho complexo ao trabalho simples é algo historicamente específico e não uma característica universal da produção humana, limitada não apenas ao capitalismo, mas ao capitalismo industrial clássico. Tal como Anson Rabinbach demonstrou, ele  opera  somente  dentro da ruptura do século XIX, com Hegel. O postulado do motor termodinâmico como um paradigma de como a força de trabalho opera, o paradigma que substitui o paradigma hegeliano do trabalho como o desenvolvimento expressivo da subjetividade humana, ainda operava  nos textos do jovem Marx.

O motor termodinâmico era o servo de uma natureza poderosa, concebida como um reservatório de força motriz inesgotável. O corpo de trabalho, o motor a vapor e o cosmos estavam conectados por uma corrente única e inquebrantável, por uma energia indestrutível, omnipresente no universo e capaz de mutações infinitas, ainda que imutáveis e invariantes. […] Essa descoberta também teve um efeito profundo de mudança no pensamento de Marx sobre o trabalho. Após 1859, Marx cada vez mais considerou a distinção entre trabalho concreto e abstrato na linguagem da força de trabalho, como um ato de conversão em vez de geração. […] Em outras palavras, Marx sobrepôs um modelo termodinâmico de trabalho ao modelo ontológico de trabalho que ele herdou de Hegel. Como resultado, a força de trabalho de Marx tornou-se quantificável e equivalente a todas as outras formas de força de trabalho (na natureza ou nas máquinas). […] Marx tornou-se uma “produtivista”, quando ele não mais considerou ser o trabalho simplesmente um modo de atividade antropologicamente “paradigmático” e, quando, em harmonia com a nova física, ele viu a força de trabalho com uma magnitude abstrata (uma medida de tempo de trabalho) e uma força natural (um conjunto específico de energia equivalente localizada no corpo).”[4]

Dentro desse quadro conceitual da universalidade do trabalho abstrato, o comunismo não é apenas a restauração da unidade da humanidade com a natureza, mas, simultaneamente, a realização de sua ruptura: no capitalismo, a produção social permanece “irracional”, não regulada pelo planejamento social (que caracteriza a humanidade) e, nesse sentido, pré-humano, parte da “história natural”. O problema subjacente aqui é filosófico: em Saito falta essa ruptura, pois ele aceita inquestionavelmente a definição de Marx (n’O Capital) da especificidade humana: enquanto todas as espécies vivas estão envolvidas no metabolismo, de troca de matéria entre seu próprio organismo e seu ambiente natural, apenas a espécie humana realiza esse metabolismo através do trabalho no sentido de uma atividade regulada conscientemente. Aqui está a famosa passagem do Capital I:

Uma aranha conduz operações que se assemelha ao do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos na construção de sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o arquiteto ergue sua estrutura na imaginação antes de construí-la na realidade. Ao final de todo processo de trabalho, obtemos um resultado que já existia na imaginação do trabalhador em seu início. Ele não apenas altera efetivamente a forma do material em que ele trabalha, mas ele também realiza seu próprio objetivo que confere lei a seu modus operandi, e para o qual ele deve subordinar sua vontade.[5]

A obviedade de sua definição não deve nos seduzir. A questão persiste: o planejamento consciente de um processo de trabalho requer algum tipo de distância do próprio imediatismo natural, e a forma desse imediatismo é a linguagem, portanto, não existe trabalho em um sentido humano específico sem  linguagem. Isso implica em muitas coisas: linguagem não é apenas um instrumento de comunicação; ela forma o que Lacan chamou de “grande Outro”, a substância do nosso ser social, a densa rede social de regras e padrões escritos e não escritos.

Marx fornece  sua definição de trabalho de maneira muito apressada, já que que ofusca  ou ignora outra ruptura. Procedendo a passagem citada: ele escreve:

Agora não estamos lidando com aquelas formas instintivas do trabalho que nos lembram o mero animal. Um imensurável intervalo de tempo separa o estado de coisas em que o homem traz sua força de trabalho para vender no mercado como uma mercadoria, daquele estado em que o trabalho humano ainda estava em seu primeiro estágio instintivo. Pressupomos o trabalho em uma forma que o estampa como exclusivamente humano.[6]

A limitação compartilhada por Marx e Saito aqui é clara: ambos postulam uma linha progressiva da animalidade aos seres humanos, da atividade instintiva à planejada/consciente, de modo que as fases pré-modernas são percebidas como “formas instintivas e primitivas de trabalho que nos lembram o mero animal”. Entretanto, essas “formas instintivas e primitivas de trabalho que nos lembram o mero animal” já envolvem uma ruptura radical com a natureza. A “ruptura metabólica” já está lá; o “metabolismo” das sociedades antigas já está fundado em um grande Outro simbólico de trocas reguladas. Basta recordar dos antigos Astecas e Incas, cujo metabolismo social era regulado por um enorme aparato simbólico e cuja atividade resultava em rituais de sacrifício: temos que executar sacrifícios humanos para que a circulação mais “natural” da natureza seja mantida (então o sol nasce de novo, etc.), e o sacrifício é, por definição, uma perturbação de um metabolismo suave. Em suma, a ruptura metabólica com a vida (animal) é a própria cultura, mesmo que – ou especialmente quando – seja fundada no ritmo natural das estações, quando projeta significação à natureza. Quando, em seus escritos “antropológicos”, Freud investiga as origens de tais rituais, sua resposta definitiva é que a verdadeira ruptura metabólica (o corte entre natureza e cultura) é a própria sexualidade. A sexualidade humana é imanentemente auto-sabotadora: envolve os paradoxos do desejo e impõe seu próprio ritmo violento sobre os ritmos “naturais”. O nome freudiano para esse paradoxo é, claro, pulsão de morte.[7]

Saito, portanto, é pouco cauteloso ao conceber o metabolismo trans-histórico da vida humana e natural como a base sobre a qual o capitalismo parasita. Há um terceiro termo entre esses dois, a saber, a própria ordem simbólica, o universo das ficções simbólicas, a substância simbólica de nossas vidas sociais, e o capitalismo não está destruindo apenas nosso habitat natural, mas também nossa substância simbólica compartilhada, o que Hegel chamou de Sitten. Esse desconhecimento da ordem simbólica também afeta a noção de comunismo de Marx. Quando, no final do capítulo I d’O Capital, Marx descobre a matriz de quatro modos de produção/troca, ele inicia e termina com o exemplo imaginado de Robinson Crusoe. E o que acho importante é que, no final, ele recupera isso como um modelo de uma sociedade comunista transparente sem a inversão fetichista:

Como as experiências de Robinson Crusoe são um tema favorito dos economistas políticos, nos deixe analisá-lo em sua ilha. Embora ele seja moderado, ainda assim alguns desejos ele tem que satisfazer, e fazer, portanto, um pequeno trabalho útil de vários tipos, como fazer ferramentas e móveis, domar cabras, pescar e caçar. […] Apesar da variedade de seu trabalho, ele sabe que seu trabalho, qualquer que seja a forma, é a atividade de um e mesmo Robinson e, consequentemente, que isso consiste em nada além de diferentes modos de trabalho humano. […] Todas as relações entre Robinson e os objetos que formam a riqueza de sua própria criação são aqui tão simples e claros como são inteligíveis sem esforço, mesmo para o Sr. Sedley Taylor. E, contudo, essas relações contêm tudo o que é essencial para a determinação do valor.

Vamos agora nos transportar da ilha de Robinson banhada em luz para a Europa medieval envolta em trevas. Aqui, em vez do homem independente, encontramos todos dependentes, servos e senhores, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza aqui a relação social de produção apenas tanto quanto faz as outras esferas da vida organizadas com base nessa produção. Mas, pela mesma razão que a dependência pessoal forma o trabalho de base da sociedade, não há necessidade para o trabalho e seus produtos assumam a forma fantástica diferente da sua própria realidade. […]

Para um exemplo de trabalho comum ou diretamente associado, não temos ocasião de voltar para aquela forma desenvolvida espontaneamente que encontramos no limiar da história de todas as raças civilizadas. Temos um por perto nas indústrias patriarcais de uma família de camponeses, que produz milho, gado, fios, linho e roupas para uso doméstico. Esses diferentes artigos são, em relação à família, produtos do próprio trabalho, mas, entre eles, não são mercadorias. […] A força de trabalho de cada indivíduo, por sua própria natureza, opera nesse caso meramente como uma porção definida de toda força de trabalho da família, e, portanto, da medida do gasto da força de trabalho individual por sua duração, aparece aqui por sua própria natureza, como uma característica social de seu trabalho.
Imaginemos agora imaginar para nós mesmos, de uma forma diferente, uma comunidade de indivíduos livres, fazendo seu trabalho com os meios de produção em comum, em que a força de trabalho de todos os diferentes indivíduos é aplicada conscientemente como a força de trabalho combinada da comunidade. Todas as características do trabalho de Robinson estão aqui repetidas, mas com uma diferença, que elas são sociais, em vez de individual. […] As relações sociais dos produtores individuais, em relação a seu trabalho e seus produtos, são nesse caso perfeitamente simples e inteligíveis, e no que diz respeito não apenas à produção, mas também à distribuição.”[8]

Esta série de quatro modos de produção – Robinson sozinho, dominação medieval, coletivos de famílias e comunismo – é surpreendente e contra-intuitiva. O primeiro mistério que chama atenção é: por que temos a família onde nós esperamos o capitalismo como o modelo que segue a dominação direção do período medieval? Não deveria a família estar no início, como um modo que caracteriza as sociedades “primitivas” pré-classe? Ao contrário da família, Marx inicia com o exemplo de Robinson (um produtor sozinho). Porque Robinson está no ponto inicial quando (como Marx sabia muito bem) Robinson não é um ponto de início histórico, mas um mito burguês? Não teria Marx iniciado com Robinson para, em um (pseudo-)círculo dialético hegeliano, poder  voltar a um Robinson coletivo ao final, como um modelo imaginado de sociedade comunista? O paralelo com Robinson permite a Marx imaginar o comunismo na qualidade de  sociedade auto-transparente, na qual as relações entre indivíduos não são mediadas por nenhum grande Outro opaco e substancial. E nossa tarefa hoje é pensar o comunismo fora desse horizonte.



17 de fevereiro, 2020

Tradução: Moisés João Rech
Revisão: Felipe Taufer e Marcus Apolinário
Original: https://thephilosophicalsalon.com/is-abstract-labor-universal/


[1] https://www.marxists.org/archive/marx/works/1857/grundrisse/ch01.htm.

[2] Marx, op. cit.

[3] David Harvey, A Companion to Marx’s Capital, London: Verso Books 2010, p. 29.

[4] Anson Rabinbach, From Emancipation to the Science of Work: The Labor Power Dilemma. (citado do manuscrito).

[5] https://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/ch07.htm.

[6] Op. cit.

[7] Devemos mesmo ir um passo além (ou, ao contrário, atrás) aqui. Não é apenas que uma fenda metabólica acontece com a humanidade; uma fenda já opera na própria natureza pré-humana. Apenas pensar sobre nossa principal fonte de energia, óleo e carvão. Que tipo de fenda teve que acontecer para criar esses tipos de reservas? Então, devemos aceitar esta paradoxo: se a humanidade sempre alcançou um tipo de metabolismo harmonioso (troca com a natureza), será imposta pela humanidade como um tipo de “segunda natureza”. Diferentes ideias de regulação de todo o metabolismo sobre a Terra para prevenir uma catástrofe ecológica já circulam, e alguns deles envolvem intervenções radicais nos ciclos naturais (como pulverizar nossa atmosfera com químicos, que irão diminuir a quantidade de raios solares que atingem a Terra).

[8] https://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/ch01.htm#S4

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