O abominável atentado perpetrado contra Samuel Paty por um criminoso fanatizado suscitou uma indignação do tamanho de seu horror.   Essa indignação também gerou uma série de comentários e propostas que atestam uma terrível confusão, principalmente no que diz respeito à noção de liberdade de expressão e suas manifestações.

Isso ocorre porque, já há várias décadas, desenvolveu-se um discurso dito republicano que transformou sistematicamente as noções jurídicas que definem as relações entre o Estado e os cidadãos em virtudes morais que esses cidadãos deveriam possuir e, portanto, em critérios que permitem estigmatizar aqueles que não as possuem. 

Tal operação começou pela noção de laicidade. A laicidade inscrita nos princípios de nossa constituição significa que o Estado não ensina nenhuma religião e não permite que nenhuma religião intervenha na organização da educação pública. Esta noção não está inscrita em sabe-se lá qual essência da República. A Terceira República impôs essa noção para acabar com o controle da educação pública pela igreja católica, instaurado por uma lei da… Segunda República. E a Terceira República impôs tal noção também recomendando aos professores para que não fizessem nada que ferisse as crenças de seus alunos. Na verdade, é claro que a laicidade que define a neutralidade do Estado em matéria de religião não é suficiente para regular as relações entre crentes e não crentes, nem entre os membros de religiões diferentes. O que poderia proporcionar isso é uma virtude própria para animar o comportamento dos indivíduos: a tolerância, que só adquire sentido na reciprocidade. 

Os novos ideólogos da laicidade alteraram totalmente o sentido dessa noção. Fizeram dela uma regra de conduta que o Estado devia impor aos alunos, às mães e, por fim, às mulheres em toda a sociedade. Assim, o dever laico ficou identificado com a proibição de um modo de se vestir, uma proibição discriminatória, pois dizia respeito unicamente às mulheres e as meninas de uma comunidade específica de crentes e estabelecia, com isso, uma oposição frontal entre a virtude laica comandada pela lei republicana e o conjunto de um modo de vida. 

Algo semelhante está acontecendo hoje em torno da noção de liberdade de expressão. Essa liberdade, estabelecida pela lei de 29 de julho de 1881, é uma liberdade dos jornalistas em relação ao poder do Estado, esse poder que se exprimia pela censura ou pela obrigação de uma autorização prévia. Essa lei estabelece que os jornalistas e outros atores da opinião pública podem divulgar seus escritos sem controle de uma autoridade superior, exceto para responder perante a justiça pelos crimes e contravenções que pudessem cometer no uso dessa liberdade, notadamente o crime de difamação. Ela também estabelece que os escritos podem circular sem a permissão do Estado, mas não lhes atribui, com isso, qualquer virtude de encarnação da liberdade de expressão, nem faz dessa liberdade o princípio que permite julgá-los. Os escritos – e, eventualmente, os desenhos – que circulam livremente não manifestam, no entanto, a liberdade de expressão. Eles manifestam somente as ideias e o humores de seus autores, ideias e humores que são julgados pelos leitores deles de acordo com suas próprias ideias e humores. Se tomarmos o caso das caricaturas de Maomé – mesmo deixando de lado o caráter difamatório que alguns podem ter visto – elas não expressam nenhuma virtude imanente de liberdade. E não se destinam a induzir o amor por essa mesma liberdade. Expressam, entre outras coisas, o sentimento de desprezo que os espíritos que pensam pertencer a uma elite esclarecida sentem e querem compartilhar com relação à religião de populações que consideram atrasadas.

Criminosos fanatizados pretenderam vingar esse desprezo com a monstruosa execução de jornalistas do Charlie-Hebdo. Entretanto, a partir daí, um mecanismo ideológico perverso entrou em ação. Como o horror sofrido por esses jornalistas fazia deles mártires da liberdade de expressão, as próprias caricaturas se tornaram a encarnação dessa liberdade.  A caricatura em geral, que historicamente serviu às mais diversas causas, inclusive às mais abjetas, tornou-se a expressão suprema dessa liberdade, ela própria assimilada a uma virtude de liberdade da palavra e de zombaria atribuída por direito de nascença ao povo francês. E a expressão suprema de liberdade de expressão acabou sendo identificada com a expressão de desprezo por uma religião e uma comunidade de crentes considerada alheia a essa virtude francesa. A glorificação das caricaturas tornou-se assim um dever nacional. Políticos inconsequentes ou deliberadamente provocadores não hesitaram em exigir que essas caricaturas fossem exibidas em todas as escolas. Isso equivale a pedir que o fosso que separa as comunidades seja aumentado em todos os lugares, que se ajude a espalhar a intolerância e, assim, que se deem oportunidades aos assassinos, garantindo ao mesmo tempo um apoio mais amplo a seus crimes em uma comunidade que se tornou mais suscetível à ofensa. Talvez seja hora de dizer, ao contrário, que uma caricatura não é apenas uma caricatura, que aquelas são medíocres e exprimem sentimentos medíocres, e que nenhuma caricatura merece que as vidas dos jornalistas, dos professores e de todos aqueles que fazem uso público da palavra seja exposta, por causa dela, à loucura dos assassinos. É hora, também, de devolver à liberdade, pela qual tantos homens e mulheres sacrificaram e ainda sacrificam suas vidas no mundo todo, símbolos um pouco mais dignos dela.

Tradução: Marcus Apolinário

Revisão: Maria Betânia F. Champagne

Original: https://blogs.mediapart.fr/jacques-ranciere/blog/201120/propos-de-la-liberte-d-expression

Título Original: A propos de la liberté d’expression

Data: 20/11/2020

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