Samuel Hayat, 5 de dezembro de 2018

É difícil não se contagiar por esse movimento em curso. As revoltas dos Coletes Amarelos são, por inteiro, desconcertantes, mesmo para aqueles que vivem de pesquisar e ensinar a ciência da política: os atores envolvidos, seus modos de ação, suas demandas, etc. Algumas das nossas crenças mais firmes estão sendo postas em questão, notavelmente aquelas relacionadas às condições e ao êxtase dos movimentos sociais. É por esses motivos que sinto a necessidade, ou pelo menos o desejo, de escancarar algumas reflexões que tenho feito, partindo de uma comparação aberta entre aquilo que se pode ver no movimento e todo o arcabouço de conhecimento que temos quanto a outro temas. Além da pesquisa quanto ao próprio movimento que está acontecendo, vamos torcer para que a luz indireta nascida desta comparação com outros campos do saber possa nos oferecer algo diferente quanto ao que ocorreu na França.

A situação

As imagens divulgadas pela mídia durante os eventos de 1º de dezembro pareciam ter saído de alguma viagem de férias: elas mostravam uma Paris nunca antes vista, nem mesmo em 1995, 2006 ou 2016, três momentos nos quais o espaço-tempo usual das mobilizações parisienses foi profundamente deformado. Alguns creem que podem chamar esses eventos de manifestações, ou que estes configuram uma situação insurrecional. Talvez estejam certos; ao mesmo tempo, o que ocorreu não se parece nem um pouco com as insurreições que se sucederam em 1830, 1832, 1848 ou 1871. Todas essas insurreições se deram dentro de uma vizinhança, pondo em jogo sensibilidades locais, e se utilizaram de um emaranhado de relações sociais já estabelecidas para permitir que a solidariedade popular fosse empregada na execução dessas ações.¹ Mas em 1º de dezembro, as chamas brotaram de dentro da Paris burguesa, na região nordeste da cidade, que nunca tivera sido verdadeiramente um ambiente para tais operações. Longe de terem sido lideradas por forças locais, erguendo barricadas e demarcando um espaço de autonomia, essas ações foram de autoria de pequenos grupos móveis, muitas vezes residentes de outras localidades.

Claro, é evidente que sensibilidades locais possuem um papel na formação desses grupos: basta olharmos para além de Paris que veremos a reapropriação de territórios, a formação de elos duradouros… Mas naquele 1º de dezembro, essas solidariedades foram deslocadas para um espaço de demonstração em si bem usual: os locais nos quais reside o poder nacional. Aqui já nos encontramos em um registro totalmente moderno (me desculpem aqueles que falam em Jacqueries²): este é de fato um movimento nacional e autônomo, para nos voltarmos às categorias-chave com as quais Charles Tilly qualifica o repertório de ações típicas da modernidade. Mas as regras de como manifestar, há muito tempo estabelecidas (geralmente situamos sua formalização em 1909³), foram ignoradas: não houve marcha, nem representantes legais, nenhuma rota negociada, muito menos um service d’ordre⁴, tampouco panfletos, posters ou adesivos; no lugar destes últimos, havia uma miríade de slogans pessoais escritos nas costas dos coletes amarelos.

Até mesmo os profissionais responsáveis pela manutenção da ordem, numerosos em quantidade e dotados de grande poder de fogo, foram incapazes de garantirem sua própria segurança — o que dizer então quanto aos bens e pessoas que estes tem o dever de proteger?

É de se esperar que estas mesmas forças que mantêm a ordem não irão aceitar gratuitamente serem maltratadas; há portanto o risco da violência policial, já bem comum, intensificar-se ainda mais, seja por meio da ampliação do uso da força, ou mesmo por meio da declaração de um estado de emergência. A falha na manutenção da ordem física caminha lado a lado com um fracasso ainda maior na manutenção da ordem simbólica: um presidente viajando para uma cúpula internacional; o governo, enquanto isso, se mantendo silencioso, inaudível (o preço que alguém paga pela manutenção do poder pessoal, enquanto se cerca de cortesãos medíocres⁵ para que assim nenhuma sombra enfraqueça o seu brilho); e o pseudo-partido atualmente no poder (LREM) ocupando-se, no mesmo dia, de eleger um delegado geral, como se nada estivesse acontecendo.

A ordem vacilava, e a cidade foi praticamente dada de mãos beijadas aos manifestantes; tudo se tornou então permitido, e neste espaço que encarna em si o próprio privilégio, liberdades foram tomadas em relação às normas habituais do uso do espaço público. Como diz o ditado, não choraremos pelas “famílias de janelas [quebradas]”; entretanto, é necessário levarmos em consideração o quanto ameaçadora essa destruição é ao poder: no primeiro sábado de dezembro, bairros nobres, repletos de lojas e hotéis de luxo, se tornaram o alvo de tantos arrombamentos que os estabelecimentos da Avenida Haussman foram forçados a se fechar — constituindo assim um grande risco econômico. Se mudarmos nosso foco da capital para o país como um todo, veremos que a mobilização foi massiva por toda a França, tornando a manutenção da ordem muito mais custosa, às vezes até impossível. A tentação tida pelas autoridades, antes de primeiro de dezembro, de esperar a poeira baixar agora parece uma impossibilidade.

Trabalho de mobilização

A sociologia dos movimentos vem, já há algum tempo, abrindo os olhos daqueles que ainda acreditam na espontaneidade das massas. Por trás de qualquer movimento aparentemente espontâneo, há verdadeiras empreitadas de mobilização: pessoas capazes de pôr capital militante, recursos materiais e simbólicos como também habilidades adquiridas em lutas anteriores a serviço de sua causa… Não haveria Revolução de Jasmim sem Gafsa, Movimento 15-M sem o Parem com as Expulsões e o Juventud Sin Futuro, Nuit Debout sem a mobilização contra o Loi travail, etc. Podemos então acrescentar os gilets jaunes a esse conjunto de genealogias? Talvez. Mas fazer isso nos concederá apenas um pequenino poder explanatório: a mobilização se alastrou rápido demais, e alcançou o nível nacional rápido demais, o que nos impede de interpretar o movimento como um fruto do trabalho paciente de mobilizações feitas por organizações de movimentação social, ou mesmo por organizações informais.

Se há um trabalho de mobilização de caráter representativo, trazendo à existência este movimento dos Coletes Amarelos, esta ação tem sido então notavelmente descentralizada, empreendida por múltiplos grupos locais se organizando por meio de redes sociais, pela agregação e popularização de termos e símbolos do movimento feita pela mídia, e pelo trabalho de interpretação realizado por jornalistas, políticos e sociólogos⁶. O desejo de dar ao movimento porta-vozes ágeis, capazes de negociar com as autores, tem falhado (até agora). Muitos comentaristas bateram na tecla da suposta inconsistência, dentro do movimento, das suas causas e atores. Eu diria, entretanto, o contrário disso: dada a fragmentação de sua representação, a unidade dentro do movimento é surpreendente. Há uma unidade nas ações, uma solidariedade e um aparente consenso quanto à lista de demandas; há até mesmo uma unidade no ritmo. Foi particularmente feliz a escolha do colete amarelo como símbolo, vestimenta tornada obrigatória a todos os motoristas, e cuja função primária é tornar alguém visível; essa decisão certamente foi uma condição material para o rápido alastramento deste peculiar símbolo. Mas a escolha de agir, e de agir com a coerência e o rigor que temos visto, não pode ser simplesmente o resultado de um emblema cativante, de um bom uso das redes sociais, nem de um descontentamento geral, independentemente de seu tamanho e de sua natureza coletiva. As palavras de descontentamento, raiva e murmúrio são véus que nos impedem de perceber as razões para a mobilização, nos dois sentidos de razão: os fatos causadores do movimento, e a justificativa para este. O desafio posto é, então, encontrar uma explicação para este movimento que dê conta tanto de sua forma (descentralização, radicalidade) como de ua substância (demandas).

Estas últimas em particular são merecedoras de uma atenção a mais. Não sabemos bem como ela foi feita, mas uma lista de 42 demandas vem sendo amplamente disseminada tanto por grupos como pela mídia⁷. Essas reivindicações possuem traços excepcionais, os quais já foram notados: elas se referem majoritariamente a condições de vida, muito além da mera questão quanto ao preço da gasolina; elas contêm posições contrárias ao livre fluxo de imigrantes; elas propõem mudanças institucionais que fortalecem o controle, por parte dos cidadãos, de seus representantes eleitos, cuja remuneração seria reduzida para um salário médio. Esta lista vem sendo descrita como uma “colcha de retalhos.”⁸ Já eu percebo o total contrário disso: essa lista é profundamente coerente; o mesmo fator que explica essa coerência também foi aquilo que permitiu a ocorrência da mobilização dos Coletes Amarelos; e por fim, ela está ancorada em algo que podemos chamar de economia moral da classe trabalhadora [classes populaires].

A economia moral dos Gilets Jaunes

O conceito de economia moral é bem conhecido por pesquisadores das ciências sociais.⁹ Ele foi desenvolvido pelo historiador E. P. Thompson como uma maneira de nomear um fenômeno fundamental dentro dos movimentos populares do século 18: ele se refere às concepções amplamente comuns quanto a qual deve ser o funcionamento correto da economia, moralmente falando.¹⁰ Era como se fosse auto-evidente que certas regras precisavam ser respeitadas: o preço dos bens de consumo não pode ser excessivo demais em comparação ao seu custo de produção; critérios de reciprocidade, no lugar da “mão invisível do mercado”, devem regular as trocas comerciais, etc.; e na mesma hora em que se soubesse que essas regras não-ditas foram desrespeitadas, ou ameaças pelas regras do mercado, o povo sentiria que era um direito seu a revolta, e esta era frequentemente iniciada por mulheres. Suas motivações eram bem econômicas, mas não no sentido usual: elas não eram instigadas por interesses estritamente materiais, mas por alegações morais quanto ao funcionamento da economia. Ocorreram, simultaneamente e até mesmo posteriormente, revoltas na França similares entre si: por exemplo, os mineradores da Compagnie d’Anzin, que foi a maior empresa francesa durante boa parte do século XIX, regularmente entravam em greve para fazer seus chefes relembrarem das normas pelas quais, de acordo com os mineradores, devem organizar o trabalho e a sua remuneração; esta demanda muitas vezes era feita com base em uma referência a uma “antiga ordem das coisas” — em outras palavras, ao costume.¹¹

A semelhança com o movimento dos Coletes Amarelos é impressionante. Sua lista de reivindicações sociais é uma formulação de princípios econômicos essencialmente morais: é necessário que os mais vulneráveis (os sem-teto, os deficientes) sejam protegidos, que a solidariedade funcione corretamente,¹² que sejam garantidos à população os serviços públicos, que sonegadores sejam punidos e que todos contribuam [para os impostos] de forma proporcional aos seus recursos, algo perfeitamente resumido na fórmula “que os grandes paguem uma grande quantia, e os pequenos uma pequena quantia.” Estas exigências podem parecer serem apenas um bom senso comum — mas na verdade elas não são auto-evidentes: elas dependem que alguém se ponha contra a glorificação utilitária da política de economia pelo lado da oferta e da teoria do gotejamento, “crescer o bolo para depois reparti-lo”, tão amada pelas elites (esta se resume a dar mais para aqueles que tem mais, os primeiros na corda de rapel, para assim atrair mais capital), e passe a afirmar que a verdadeira economia precisa ser pautada em princípios morais. É com toda certeza isto o que dá ao movimento dos Coletes Amarelos sua força e seu massivo apoio pela população francesa: ele articula, sob a forma de reivindicações sociais, princípios econômicos morais os quais o poder reinante tem atacado sem cessar, às vezes até se orgulhando disso. Por isso, a coerência do movimento pode ser melhor entendida, assim como o fato de que ele pôde ocorrer sem organizações centralizadas, se levarmos em consideração aquilo que James Scott demonstrou: o emprego da economia moral dá origem a uma capacidade coletiva de agir, uma agência, e acaba incluindo atores sociais normalmente desprovidos do capital necessário para se mobilizarem.¹³

Na verdade, a economia moral não é apenas uma junção de normas passivamente compartilhadas pela classe trabalhadora. Ela também é o resultado de um pacto implícito entre aqueles que exercem domínio, e por isso sempre se insere dentro de relações de poder. A classe trabalhadora estudada por E. P. Thompson já tinha, em pleno século XVIII, uma economia moral com traços profundamente paternalistas: esperava-se que aqueles dotados de poder respeitassem este pato, em troca da ordem social, em geral aceita pela sociedade, agradável às classes dominantes. Mas se os poderosos viessem a quebrar esse pacto, as massas poderiam então, por meio da revolta, fazê-los voltarem a obedecer a ordem estabelecida. Foi isso que ocorreu na Revolta dos Four Sous, em Anzin, 1833: os mineradores protestaram contra uma redução dos salários, mas para alcançar seus objetivos, puseram-se sob a guarda de seus antigos patrões, os quais tinham sido depostos pelos capitalistas que agora controlavam a empresa, cantando: “Abaixo aos parisianos, longa vida aos Mathieus de Anzin!”. Não há nada de exagerado em dizer que as autoridades atuais também quebraram este pacto implícito, tanto por suas medidas antissociais como por demonstrarem repetidamente desdém contra a classe trabalhadora. A revolta não brotou do nada, por um simples descontentamento ou por uma agência indeterminada popular posta espontaneamente em movimento: ele é o resultado de uma agressão de poder, e uma ainda mais simbolicamente violenta que o normal, pois os agressores nem mesmo reconhecem suas ações como agressões. E o presidente da República Francesa, o qual deveria representar o povo francês, se tornou a própria encarnação dessa traição, com suas falas soltas sobre “pessoas que não são nada”, seu conselho sobre como conseguir uma camisa maneira ou de como é possível achar um emprego simplesmente atravessando a rua.¹⁴ No lugar de ser um protetor da economia moral, Emmanuel Macron constantemente maltrata esta, com uma naturalidade desarmante, ao ponto de tornar-se o representante por excelência das forças que se opõem a essa economia moral. Tal como ele disse durante sua campanha eleitoral no ISF¹⁵, “uma coisa não é injusta apenas porque ser mais eficiente”¹⁶: é difícil pensar em um exemplo melhor do que este para mostrar seu desconhecimento, ou desprezo, de outras normas que não sejam financeiras. Foi ele que quebrou o pacto: a charivari nacional sendo tocada agora é direcionada contra ele; portanto, só nos é possível esperar duas coisas: essa charivari vai terminar ou com uma repressão sangrenta, ou com a renúncia de Macron.

Economia moral e emancipação

Se podemos apenas torcer para que a renúncia ocorra, ainda assim não devemos superestimar as consequências políticas deste movimento. Revoltas fundamentadas na economia moral não se transformam necessariamente em movimentos revolucionários, pois o que é necessário para acabar com as manifestações resume-se à restauração do pacto [implícito]. Apesar da economia moral revelar a capacidade coletiva do povo e a existência de uma real (apesar de marginal) autonomia face aos governantes, ela ainda é conservadora. Ao ser ativado, esse tipo de revolta suspende o funcionamento regular das instituições, mas seu alvo é, acima de tudo, um retorno à ordem, e não uma transformação revolucionária. Há algo aqui um tanto quanto difícil de entender e formular: o fato de um movimento ser autenticamente popular, e estar ancorado nas crenças mais comunalmente compartilhadas da grande maioria, não lhe torna emancipatório. Retomando as categorias de Claude Grigon e Jean-Claude Passeron, quem acredita que o povo não possa agir por si mesmo, e que ele será sempre submisso ao poder simbólico, demonstra seu próprio légitimisme¹⁷ e misérabilisme¹⁸. A força, espontaneidade, coerência e inventividade do movimento dos Coletes Amarelos oferecem uma sonora e bem-vinda rejeição aos ataques feitos por essa ordem. Contudo, não devemos pender para o outro extremo, descrito por esses mesmos autores como populismo, de imaginar que porque um movimento é popular isso implica que ele alcançou a verdade política, é autêntico e correto. Este movimento não é bem um sinal de revolução, mas sim de um começo, frente ao real declínio das instituições governamentais representativas.

No fim das contas, algo que também revela o uso, por parte dos Coletes Amarelos, da economia moral é a extensão do deserto político que se instalou nas últimas décadas. O fato de que foi necessário aguardar até a ruptura do pacto implícito fundamental entre governantes e governados para que um movimento como o dos Coletes ocorresse, enquanto o governo há décadas nos esmurra com medidas de segurança e anti-sociais, nos mostra que o poder de mobilização dos sindicatos e forças políticas foi reduzido a pó, ou então que as formas de mobilização que estes grupos tomaram emprestadas para si os colocaram em um estado de total impotência. Todavia, que fique bem claro: não há nada a se comemorar por termos chegado a esse ponto, um de ruptura, como se agora algo pudesse finalmente acontecer — este algo sendo o retorno de formas pré-modernas de ação coletiva, sob modos com toda certeza renovados. Eis aqui o limite, e também uma lição importante, da relevância da comparação entre os Coletes Amarelos e as revoltas do passado que demonstravam uma economia moral: este paralelo não deveria ser possível, dada a distância supostamente imensa que separa as condições políticas dessas duas situações, mas mesmo assim a comparação se impõe com muita força. A economia moral pertence a períodos e espaços nos quais as formas nacionais e ideologizadas de politização da modernidade democrática, baseada no confronto entre projetos políticos e até mesmo visões de mundo opostas, ainda não exercia um papel na política. Isto nos mostra que o movimento dos Coletes Amarelo talvez é de um outro tempo — mas ele expõe muitas coisas relativas ao nosso momento atual.

Isto tudo implica em um preço que precisamos medir: movimentos baseados na economia moral são parte de um chamado aos velhos costumes, de submissão à ordem, mas também existem dentro do contexto de uma comunidade. A economia moral não é conservadora apenas por retornar a normas atemporais, mas também porque ela exerce o ato de unir utilizando como base um pertencimento coletivo. É isso que explica porque o potencial excludente dos Coletes Amarelos não é apenas uma escória facilmente eliminável: ela é o coração do movimento. Um exemplo flagrante são as demandas contra o livre fluxo de imigrantes, pela expulsão de estrangeiros e a integração forçada de não nacionais (“Viver na França implica em se tornar francês [curso de francês, cadeiras de história francesa e educação civil com um certificado após conclusão]”): tudo isto é inseparável do movimento porque essas coisas são a própria consequência lógica da implementação da economia moral da comunidade original, mesmo que essa economia possa ser manipulada pelo movimento em diferentes direções. A economia moral é a proclamação das normas de uma comunidade, e ela não inclui a lógica da igualdade para estrangeiros, muitos menos reconhece conflitos internos, em particular ideológicos. Este último ponto explica bem o porquê da recusa de um poder representativo para a reapropriação popular da política. Mas ela também é a recusa do partidarismo da democracia, da oposição entre projetos políticos, em favor de uma unidade a qual sabemos muito bem que pode facilmente se tornar em uma “congregação de ódio construída em torno da paixão pelo Um que exclui.”¹⁹

O desvio por meio deste paralelo histórico com o passado talvez não pareça muito capaz de compreender a situação em sua excepcionalidade. Talvez isto seja apenas um jogo mental. Mas talvez, pelo contrário, ele revele algumas das características fundamentais do movimento atual: sua improvável unidade, seu apoio pela população, seu aspecto de revolta, mas ao mesmo tempo seus aspectos verdadeiramente conservadores, anti-pluralistas e excludentes. Em Anzin, os mineradores não ficaram para sempre promovendo greves pautadas na economia moral. Ao entrarem em contato com as primeiras forças socialistas e sindicais da região, eles adotaram suas ideias e sua forma, e acabaram se tornando um dos primeiros centros dos quais o anarco-sindicalismo nasceu. Alguns comitês locais dos Coletes Amarelos, longe de se apegarem a um modo de protestar fundamentado na economia moral, clamam pela formação de comitês populares e de democracia radical, ou seja, pela emancipação política radical.²⁰ Nada está garantido, tudo é possível.

[1] Laurent Clavier, Louis Hincker et Jacques Rougerie, “Juin 1848. L’insurrection”, in 1848: actes du colloque international du cent cinquantenaire, tenu à l’Assemblée nationale à Paris, les 23–25 février 1998, Jean-Luc Mayaud (dir), Paris, Creaphis, 2002, p. 123‑140; Maurizio Gribaudi, Paris ville ouvrière: une histoire occultée (1789–1848), Paris, La Découverte, 2014; Michèle Riot-Sarcey, Le procès de la liberté: une histoire souterraine du XIXe siècle en France, Paris, La Découverte, 2016. Merci à Célia Keren pour sa relecture.

[2] Gérard Noiriel mostra bem os problemas de qualificar dessa maneira o movimento: https://noiriel.wordpress.com/2018/11/21/les-gilets-jaunes-et-les-lecons-de-lhistoire

[3] Samuel Hayat, “La République, la rue et l’urne”, Pouvoirs, vol. 116, 2006, p. 31‑44

[4] Nota da tradução inglesa: Forças de segurança empregadas por sindicatos oficiais na França.

[5] Ecoutons Agnès Buzyn assurer le 1er décembre que “Tous les jours nous agissons pour faire disparaître la colère et la peur” ou Benjamin Griveaux le lendemain que “nous ne changerons pas de cap car le cap est le bon”.

[6] Aqui, vejam: https://noiriel.wordpress.com/2018/11/21/les-gilets-jaunes-et-les-lecons-de-lhistoire/

[7] Por exemplo: https://www.francebleu.fr/infos/societe/document-la-liste-des-revendications-des-gilets-jaunes-1543486527

[8] https://www.liberation.fr/france/2018/12/04/les-gilets-jaunes-un-magma-de-revendications-heteroclite_1695802

[9] Le thème a déjà été mentionné par plusieurs commentateurs du mouvement, notamment l’étudiant Léo Labarre (https://lvsl.fr/le-17-novembre-au-dela-des-gilets-jaunes) et l’historien Xavier Vigna (http://www.leparisien.fr/economie/gilets-jaunes-ils-inventent-leurs-propres-codes-estime-un-historien-26-11-2018-7954086.php) .

[10] Edward Palmer Thompson, “The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century”, Past & Present, n°50, 1971, p. 76‑136

[11] Samuel Hayat, “Une politique en mode mineur. Ordre patronal et ordre communautaire dans les mines du Nord au XIXe siècle”, Politix, n°120, 2017

[12] tr. Uma terminologia especificamente francesa: serviços de assistência social pública são conhecidos como solidarités.

[13] James C. Scott, The Moral Economy of the Peasant Rebellion & Subsistence in Southeast Asia, New Haven, Yale University Press, 1977

[14] Nota da tradução inglesa: Macron se envolveu numa controvérsia, em 2016, quando afirmou a um trabalhador anti-Loi travail: “você não vai me assustar com essa sua camiseta aí. A melhor maneira de desfrutar de um terno é trabalhando para poder comprá-lo.” Em setembro de 2018, ele se envolveu em outra controvérsia: um jovem lhe disse que estava tendo dificuldades em encontrar um emprego — a resposta dada por Macron foi: “Mas há tantas vagas! Você precisa ir procurar por elas. Neste momento… Hotéis, cafés, restaurantes… Se eu cruzar a rua, consigo achar um emprego pra você!”

[15] NT: ISF = Impôt de solidarité sur la fortune. tr. Imposto solidário sobre riquezas.

[16] NT: Esta é uma referência à abolição, por Macron, do ISF, e ao fato deste simplesmente achar “mais eficiente” taxar menos os ricos.

[17] NT: Um termo utilizado para descrever um movimento político francês em favor do restabelecimento da monarquia pelo mais velho dos Capétiens, líder da casa de Bourbon (fonte: Wikipedia).

[18] NT: Um termo utilizado em oposição ao populismo; desenvolvido por Jean-Claude Passeron. Ele descreve uma atitude que consiste em “enxergar na cultura dos pobres apenas uma cultura empobrecida.” (source: Wikipedia)

[19] Jacques Rancière, Aux bords du politique, Paris, Folio, 2004

[20] https://manif-est.info/L-appel-des-gilets-jaunes-de-Commercy-853.html


Autor: Samuel Hayat (Sociólogo francês)
Publicado em: 5 de dezembro, 2018
Original: https://samuelhayat.wordpress.com/2018/12/05/les-gilets-jaunes-leconomie-morale-et-le-pouvoir/
Tradução original para o inglês: Ediciones inéditos (https://ediciones-ineditos.com/2018/12/11/moral-economy-power-and-the-yellow-vests/)
Tradução para o português e revisão: Eliel Micmás [Comunidade dos Tradutores Proletários]

Arte de capa: Eliel Micmás [Comunidade dos Tradutores Proletários]

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