“Os maiores filósofos nasceram sem pai e viveram na solidão do seu isolamento teórico e do risco solitário que assumiram perante o mundo” —Louis Althusser


“Se quiseres conhecer o teu inimigo, terás que penetrar no país do teu inimigo”— Lenine


“Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação.” —Theodor W. Adorno


A Ponte de D Luís I fornece-me a imagem que pretendo converter em conceito: pensar uma nova ligação entre o passado e o futuro numa conjuntura política e social pouco favorável à mudança qualitativa. É certo que ando preocupado com a elaboração de uma nova Filosofia da História, mas não é esta tarefa teórica que me proponho levar a cabo, pelo menos neste texto. De momento, interpreto a necessidade de pensar a ligação entre o passado e o futuro como rejeição de toda a filosofia pós-marxista, sobretudo daquelas filosofias que reclamam a herança de Nietzsche, o monstro dos monstros. (Excluo do campo da Filosofia a filosofia analítica anglo-saxónica que é basura!) Acabo de fazer uma opção: escolho Marx contra todas as figuras dominantes do pensamento filosófico dos últimos 50 anos. Porém, a escolha de Marx está condicionada pela rejeição filosófica e política do presente. Deste modo, a nova ligação que pretendo pensar diz respeito à ligação entre o passado e o futuro da teoria crítica: o que pretendo pensar é uma nova prática política para este mundo alucinado que caminha para a catástrofe. A ideia de catástrofe empresta desde logo um cunho pessimista à filosofia da história subjacente à necessidade de pensar uma nova prática política marxista: o optimismo que Marx partilhava com a filosofia das luzes é rejeitado em bloco. A rejeição do mundo presente não é apenas a rejeição do neoliberalismo, esse monstro tecno-financeiro que mergulhou o mundo no caos da miséria e da pobreza, mas também a rejeição das duas grandes correntes do pensamento político que se reclamam de Marx: o comunismo e a social-democracia. Sim, rejeito categoricamente o comunismo e a social-democracia que, juntamente com o neoliberalismo, ajudaram a moldar esse monstro sem futuro que é o mundo presente, mas, apesar de rejeitar o passado político do marxismo, permaneço fiel ao espírito crítico de Marx quando conservo a ligação orgânica entre a Filosofia e a Política. Não estou a negar as virtudes do comunismo e da social-democracia contra os excessos necrófilos do neoliberalismo: o que rejeito é a terrível ideia do Fim da História que se apoderou até mesmo do neoliberalismo de Francis Fukuyama pela via de Alexandre Kojève. Althusser teve o grande mérito de ter denunciado este modo de ler Marx ou mesmo de ler Hegel: «Nele – em Kojève – tudo girava em torno da luta de (vida ou de) morte e do Fim da História, a que ele atribuía um espantoso conteúdo burocrático. Terminada a história, quer dizer, a história da luta de classes, a história não acaba, mas nada mais se passa nela a não ser a rotina da administração das coisas (viva Saint-Simon!). Uma forma de associar sem dúvida os desejos do filósofo e o estatuto do grande burocrata.»
Rejeitar o Fim da História é rejeitar o conteúdo tecno-burocrático que lhe atribuiu Kojève, abrindo o caminho para a emergência desta nova classe dirigente (James Burnham, Milovan Djilas) que são os economistas, os administradores e os gestores públicos e privados: a administração das coisas de Saint-Simon foi assumida escrupulosamente por esta nova classe de dirigentes tecnocratas, cujo economicismomonetarista sufocou a imaginação política e liquidou a economia, como se o fim da história – o mundo pós-histórico – fosse a derradeira realidade do mundo humano: «Na época em que redigi essa nota (1946), o retorno do homem à animalidade não me parecia impensável como perspectiva de futuro (aliás, mais ou menos próximo). Mas compreendi pouco depois (1948) que o fim hegeliano-marxista da história não estava para vir, mas já é presente» (Kojève). A emergência desta nova classe dirigente produziu efectivamente aquilo a que chamo sociedade metabolicamente reduzida, o mundo pós-histórico que Kojève pensou como retorno do homem à animalidade: «Se admitirmos “o desaparecimento do homem no fim da história”, se afirmarmos que “o homem continua vivo enquanto animal”, especificando que “o que desaparece é o homem propriamente dito”, não podemos dizer que “tudo o resto pode manter-se indefinidamente: a arte, o amor, o jogo, etc.”. Se o homem volta a ser um animal, toda a sua arte, amor e jogos também voltam a ser puramente naturais. Logo, é necessário admitir que, após o fim da história, os homens construirão os seus edifícios e as suas obras de arte como os pássaros constroem os seus ninhos e as aranhas tecem as suas teias, executarão concertos musicais a exemplo das rãs e das cigarras, brincarão como brincam as crias de animais e entregar-se-ão ao amor como fazem os animais adultos. (…/…) “O aniquilamento definitivo do homem propriamente dito” significa também o desaparecimento definitivo do discurso (Logos) humano em sentido próprio. Os animais da espécie Homo sapiens reagirão por reflexos condicionados a sinais sonoros ou mímicos, e os seus falsos “discursos” serão semelhantes à pretensa “linguagem das abelhas” O que desaparece então não é apenas a filosofia ou a busca da sabedoria discursiva, mas também a própria sabedoria, porque já não haverá nesses animais pós-históricos “conhecimento (discursivo) do mundo e de si”» (Kojéve). A profecia do fim da história de Kojève cumpriu-se no mundo presente, onde os homens se comportam como meros animais que reagem aos estímulos-sinais por meio de reflexos condicionados. Porém, a sociedade administrada não interrompeu a marcha triunfal dos vencedores: a história continua a ser o palco das classes dominantes. Um pensamento dialéctico que conceba o retorno do homem à animalidade auto-liquida-se, na medida em que nega a abertura aos horizontes históricos possíveis, bem como o risco permanente que lhe é inerente, imposta pelo facto do homem só poder criar a sua humanidade negando-se como animal. A vitória da natureza – mediada pelas tecnologias perversas do poder instituído – sobre a história não só liquida a dialéctica, como também aponta no sentido da catástrofe e do fim da aventura humana sobre a terra. A vitória contínua dos vencedores conduz-nos à auto-destruição e, neste sentido, o capitalismo tornou-se inimigo mortal da humanidade. É muito difícil imaginar um futuro liberto no quadro global de um mundo capitalista: o futuro não está garantido, sobretudo quando os homens abdicam da sua humanidade para viverem como animais saciados e satisfeitos. Mas até mesmo esta ilusão da saciedade plena – alimentada pelo crédito ao consumo – não tem futuro garantido. O futuro que podemos vislumbrar a partir deste presente indigente promete ser pior do que o passado, o que significa que não há garantias históricas. E, na ausência dessas garantias históricas, já não podemos confiar na possibilidade de realização de uma sociedade comunista, sobretudo quando é pensada como reconciliação plena.
Althusser definiu o materialismo como a filosofia que não alimenta ilusões: as grandes ilusões do nosso tempo indigente são a confiança neoliberal depositada na economia de mercado e a apologia do sector financeiro e da bancocracia. A nova prática política não deve abandonar a crítica marxista do capitalismo: o capitalismo e as forças políticas da Direita geram e perpetuam o mal-existente. A escolha de Marx garante a não-capitulação da filosofia perante o capitalismo e a sua miséria cultural. Neste sentido, não posso estar completamente de acordo com Kojève quando escreve que «é na falta de lembrança (ou de compreensão) histórica que está o perigo mortal do niilismo ou do cepticismo, que pretendem tudo negar sem nada conservar, ainda que sob a forma de lembrança. Uma sociedade que passa o seu tempo a escutar o intelectual radicalmente não-conformista, que se compraz em negar (verbalmente!) qualquer dado (até o dado sublimado mantido na lembrança histórica) só porque é um dado, acaba por soçobrar na anarquia inactiva e desaparece. Da mesma forma, o revolucionário que sonha com uma “revolução permanente”, que nega todo o tipo de tradição e não leva em conta o passado concreto a não ser para o suprimir, acaba necessariamente no nada da anarquia social ou na sua própria anulação, física ou política. Só o revolucionário que consegue manter ou restabelecer a tradição histórica, conservando numa lembrança positiva o presente dado que ele mesmo relegou ao passado pela sua negação, consegue criar um novo mundo histórico capaz de existir». O pensamento e a prática política marxistas têm a sua própria tradição histórica, cujo esquecimento conduz efectivamente ao niilismo ou ao cepticismo: as filosofias de cunho nietzschiano que dizem Sim à vida – como as de Deleuze e de Foucault, duas figuras de destaque do pensamento vagabundo (nómada? débil?) – perderam esse contacto com o legado histórico e, na ânsia de gerar pensamentos novos, acabaram por soçobrar na anarquia inactiva, sem contacto real com as transformações sociais que aconteceram desde o final da II Guerra Mundial. A recusa da história – e o discurso do fim da história mais não é do que recusa da história! – conduziu à apologia da vida, não de uma vida melhor, mas sim da vida tal como é vivida numa sociedade metabolicamente reduzida. É certo que o esquecimento da tradição histórica conduz à anarquia inactiva e à perda de identidade, mas o conceito de revolução permanente tal como Marx o utilizou no Manifesto do Partido Comunista tem hoje mais pertinência teórica e política do que o tema de uma revolução social conduzida pelo proletariado. Recusar a história é imobilizá-la e imobilizar a história é fazer a apologia ideológica do mundo histórico actual, como se ele tivesse realizado todas as aspirações do homem sofredor de ontem, de hoje e de amanhã. As filosofias pós-marxistas que recusaram a história são meras formas ideológicas que devem ser responsabilizadas pela miséria do presente, tornada visível pela crise financeira de 2007-08, não só porque alimentaram as ilusões promovidas pela sociedade de consumo e pela bancocracia, como se a pobreza e a miséria tivessem sido efectivamente abolidas, mas também porque esqueceram o legado histórico e, sobretudo, o sofrimento passado. Quando olhamos para trás, isto é, para o passado, o que vemos é a marcha triunfal dos vencedores. Tanto Marx como Engels estavam cientes de que a história avança pelo seu lado mau: «a História é talvez a mais cruel de todas as deusas; ela conduz o seu carro triunfal sobre montes de cadáveres, não só na guerra mas também nos períodos de desenvolvimento económico pacífico» (Engels). A história é catástrofe e, num mundo abandonado pelos deuses, a humanidade está irremediavelmente condenada à morte – individual e colectiva – e à extinção em massa: adiar de forma consciente e resoluta esse final trágico da aventura humana sobre a terra constitui uma prioridade da política marxista. Enquanto agentes históricos, dialécticos e mortais, não podemos garantir a continuidade da aventura humana: qualquer tentativa de colonizar o futuro é, de certo modo, inglória. À luta permanente por um mundo melhor jamais alcançado, devemos acrescentar um elemento utópico concreto: a restituição integral da história no tempo do presente. Não vale a pena sacrificar mais a humanidade sofredora em nome de um futuro sempre por vir que não nos pertence, porque não o podemos controlar, tal como não controlamos a actividade dos vulcões da Islândia ou da Indonésia. A filosofia da história que estou a propor é, aparentemente, paradoxal: pensar a situação actual concebida e definida pela prática política marxista. Privilegiar o momento actual em detrimento de um futuro distante que não nos pertence não é de todo estranho ao próprio pensamento de Marx, mas a introdução da morte no seio do marxismo exige esta atenção à vida (Bergson) no momento actual. Porém, com este desvio teórico, não estou a abrir as portas ao pragmatismo, porque exijo uma prática política que adie a catástrofe final sem permitir a repetição do passado, isto é, a regressão; pelo contrário, podemos e devemos resgatar todo o sofrimento do passado. É certo que não podemos alterar o passado que já foi, mas podemos fazer tudo para que o sofrimento passado das vítimas da história dos vencedores não tenha sido em vão: a consciência histórica responsabiliza-nos perante o tribunal da razão dialéctica e leva-nos a lutar pela interrupção no momento presente dessa marcha triunfal dos carrascos que nos exploram e oprimem. A prática política marxista – liberta da sedução pela lógica do progresso – não deve dar tréguas aos vencedores da história e esta luta não é uma luta adiada para amanhã, mas uma luta permanente que se trava no momento presente.


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