“Caro Mark”, começava assim um e-mail que escrevi para um homem que nunca tinha encontrado, nos primeiros dias de 2010:

Eu li seu livro Realismo capitalista na semana passada e me senti como se tivesse voltado a respirar depois de um longo tempo debaixo d’água. Gostaria de agradecer do fundo do meu coração por dar uma expressão tão eloquente a quase tudo o que precisava ser dito e por proporcionar um motivo para ter esperança, quando eu estava prestes a entrar em desespero.

Para aqueles que não estão familiarizados com o trabalho do teórico, escritor musical, jornalista, crítico de cinema, filósofo, editor e conferencista Mark Fisher — que tragicamente tirou a própria vida há quatro anos, neste mesmo dia —, o que foi dito acima pode parecer hiperbólico ou bajulador. Mas não é. Como para tantos outros membros da minha geração, encontrar o Realismo capitalista aos 25 anos transformou minha vida.

Durante um período complicado — havia pouco tempo eu tinha “batido de frente” com a indústria musical britânica —, os escritos de Mark de fato me deram um motivo para ter esperança. Com sua eloquência, sua lucidez, porém, mais do que isso, com sua capacidade de chegar ao cerne do que havia de errado com a cultura do capitalismo tardio e de correto sobre a sua suposta alternativa, ele parecia ter decifrado um código inefável. O Realismo capitalista estabelecia uma série de pontos simples que possibilitavam contornar anos de uma delimitação pós-moderna, oferecendo uma base para a ação; era um chamado espiritual às armas, diagnosticando o problema neoliberal e reinventando a solução socialista com a força da revelação.

Essa descrição corre o risco de colocar Mark no papel dúbio de mártir da contracultura — um arquétipo ao qual ele mesmo voltou repetidamente em seus escritos, principalmente com os exemplos de Kurt Cobain e Ian Curtis. Mas a produção literária de Mark, e o Realismo capitalista em particular, sempre tiveram um aspecto de profecia ou, pelo menos, de uma estranha presciência. Ele parecia ter compreendido certas verdades sobre o século XXI muito antes de qualquer outra pessoa, tanto que, na esteira da tragédia da semana passada, as pessoas estão interpretando postagens escritas sob seu pseudônimo de k-punk no início dos anos 2000 como comentários oportunos sobre nosso presente mal-estar.

Talvez minha percepção do Realismo capitalista como uma epifania repentina venha do fato de que só conheci Mark em seus últimos anos, quando trabalhamos juntos na Zero Books e depois na Repeater, período em que ele adquiriu um certo grau de aclamação tardia.

Em ambas as editoras, a equipe entendeu tacitamente que Mark era o coração do projeto, mesmo quando ficava fora do radar por longos períodos. Mark foi, de longe, nosso autor best-seller: um herói cult que gradualmente atraiu a atenção de políticos e celebridades, de Slavoj Žižek e Laurie Anderson a John McDonnell e Russell Brand.

Mas ele também era noventa por cento da nossa identidade, mesmo enquanto foi ficando cada vez mais silencioso, ao longo do último ano. Quando deixamos a Zero Books para formar a Repeater após uma longa disputa com nossa empresa-mãe, sabíamos que, qualquer que fosse a situação legal, Mark era a Zero e, portanto, era a Repeater, e que, em última análise, apenas ele detinha a propriedade moral de qualquer uma das marcas.

Para aqueles que conheceram Mark antes de mim, sua ascensão à centralidade intelectual na última década foi vista como o resultado inevitável de uma trajetória longa e rica, que combinava o comum e o unheimlich[1]NT: o estranho-familiar, ou inquietante estranheza, conceito freudiano..

Ele nasceu em 1968 em East Midlands, uma área que fica em uma falha geológica ambígua entre o norte e o sul da Inglaterra. A região tem uma forte herança industrial e forjou os levantes ludistas[2]NT: Levantes de operários ingleses no século XIX. da década de 1810, mas fica próxima do terreno pastoral tradicional de escritores ingleses sulistas como Thomas Hardy e M. R. James. Mark regularmente se referia aos efeitos posteriores de suas origens nessa fronteira da classe trabalhadora: em suas postagens em blogs seminais sobre The fall em 2006-7 e, de maneira mais controversa, em sua polêmica de 2013 Exiting the Vampire Castle. Na verdade, Mark escreveu sobre o conceito de classe com mais sutileza e veemência que qualquer outro crítico contemporâneo.

Fica, porém, uma sensação de que ele estava deixando algumas coisas não ditas. Sempre suspeitei que Mark estava construindo um grande trabalho sobre a identidade de classe na Inglaterra dos anos 70 e 80. Nos últimos anos de sua vida, ele estava escrevendo sobre a cultura do futebol, e penso que esse assunto era o cerne da questão para ele.

Um fato um pouco discutido — porque pouco conhecido — é que Mark estava no Estádio de Hillsborough em 15 de abril de 1989, quando 96 torcedores do Liverpool morreram esmagados graças à incompetência e à força bruta empregada pela polícia. Preocupado em evitar exageros no seu envolvimento pessoal — Mark era um torcedor do Nottingham Forest, então permaneceu a alguma distância do setor em que as mortes ocorreram —, ele raramente falava sobre Hillsborough. Mas a tragédia e seu subsequente acobertamento impactaram profundamente sua mentalidade política.

Para Mark, os traumas coletivos do proletariado inglês nas décadas de 70 e 80 representaram experiências vividas cruciais — e sempre dolorosamente imediatas. Uma longa seção de sua antologia de 2014, Ghosts of my life, cobre a cultura pop britânica dos anos 70, e seu projeto intelectual foi amplamente organizado em torno do que ele chamou de “modernismo pulp” (posteriormente alterado para “modernismo popular”).

Esse projeto excedeu em muito os estudos culturais usuais. Mark nunca cedeu à nostalgia dos anos do pós-guerra (como sublinham seus riffs melancólicos sobre Joy Division e Jimmy Savile em Ghosts), mas acreditava que a contracultura social-democrata por volta de 1965-1997 representava o verdadeiro ápice do modernismo do século XX. Como tal, significava o apogeu do desenvolvimento estético humano, e estudá-la tornou-se uma fonte de imenso potencial radical. Como Owen Hatherley nos lembra, a ênfase de Mark na cultura pop não fez parte das inversões pós-modernas irônicas tão comuns no final do século passado. Mark acreditava no poder da cultura de massas com todas as facetas de seu ser intelectual, e esse é um dos muitos pontos que o diferenciam de seus predecessores filosóficos contemporâneos, especialmente Žižek e Jameson.

Na década de 1990, Mark pegou o fim do modernismo popular realmente existente, ao mergulhar em uma cena intelectual que levou o pós-estruturalismo ao seu limite natural. Enquanto escrevia sua tese de PhD na Warwick University, ele se envolveu com a Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética (CCRU) de Nick Land, uma manifestação precoce e às vezes rebelde da tendência “aceleracionista” que foi recentemente revivida, sob auspícios mais pragmáticos.

Com a alta teoria como guarda-chuva, o grupo da CCRU pegou o espírito daquele período [zeitgeist] – drum and bass, cyberpunk, ficção popular [pulp fiction], cultura dos primórdios da Internet – e avançou com ele. Aqui, muitos dos principais motes intelectuais de Mark foram sintetizados. Ele chegou até a se envolver em produções musicais, primeiro como membro do coletivo D-Generation e depois como arquiteto da faixa do Death Garage “Anticlimax (Inhumans Moreerotic Female Orgasm Analog Mix)“, cujo título oferece um vislumbre do lado lúdico de Mark, muitas vezes não revelado.

O período CCRU foi um tempo de atividades inebriantes, mas Mark só se destacou realmente como crítico depois de 2000. Como a pedra angular de uma comunidade de blogs que acabou incluindo o jornalista musical Simon Reynolds, a filósofa Nina Power e o crítico de arquitetura Owen Hatherley, entre outros, “Mark k-punk” ajudou a desenvolver e popularizar uma nova sensibilidade intelectual centrada em torno de uma importante recalibração do conceito de “rondologia”.[3]NT: Rondologia é uma das traduções possíveis para hauntology, este termo por sua vez tradução inglesa de hantologie, conceito de Jacques Derrida utilizado e modificado por Fisher. Outras … Continue reading

A origem do termo é um trocadilho com os Espectros de Marx, de Derrida, de 1994, mas Mark o utilizou como um meio de destacar o modernismo popular. Suas postagens no k-punk no blog normalmente oscilavam entre dissecações selvagens da cena musical moribunda de meados dos anos 2000 e extensas discussões sobre como a cultura pop socialista e social-democrata do pós-guerra continuava a assombrar o presente, numa época em que as alternativas políticas anticapitalistas pareciam ter se desmanchado no ar.

O conceito de rondologia que Mark ajudou a disseminar começou como uma categoria amplamente estética durante um período de estagnação política. No rastro da crise financeira de 2008, entretanto, tornou-se algo mais programático. Com seu amigo próximo, o romancista Tariq Goddard, ele reuniu o melhor da cena de blogging dos anos 2000 e fundou a Zero Books, que se tornou uma espécie de berçário para as ideias que sustentavam o ativismo revivido que se espalhou pelo Reino Unido – e pelo mundo – à medida que os anos 2000 se transformavam nos anos 2010.

Militant modernism de Owen Hatherley, One-dimensional woman de Nina Power e Non-stop inertia de Ivor Southwood foram os destaques iniciais. Mas foi Realismo capitalista o livro no bolso dos inúmeros manifestantes nos protestos estudantis de 2010, e que passou a ser o manifesto não-oficial para o ressurgimento esquerdista de 2011 – o chamado ano em que sonhamos perigosamente.

Talvez devêssemos olhar com mais ceticismo, do ponto de vista um pouco mais sombrio de 2017, para essa ênfase em “sonhar”, nas vagas promessas daquele período sobre um outro mundo recentemente possível. A título de esclarecimento, Realismo capitalista não oferece muito em termos de pronunciamentos doutrinários, recusando-se a abordar de que modo o capitalismo pode realmente ser derrotado. A revolução que a obra encorajou nos leitores era muito mais sutil e, vista em retrospectiva, mais apropriada para um movimento que estava, e provavelmente ainda está, nos primeiros estágios de renascimento. O primeiro passo na luta contra a dessocialização e a disforia arraigadas do século XXI, argumenta o livro, deve ser uma simples libertação da consciência.

Isso inicialmente soa como um retrocesso ao esquerdismo fracassado dos anos 60 e 70 e, de fato, O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari é um dos modelos para o Realismo capitalista. Mark separa seu argumento, entretanto, ao fazer do subjetivismo contemporâneo o principal local de luta e, finalmente, um meio de reativar a coletividade. Seus escritos sobre saúde mental representaram uma série de inversões brilhantes.

Você acha que se sente mal por causa de alguma aflição arbitrária chamada depressão, mas será que suas condições de trabalho têm algo a ver com isso? Disseram-nos que o capitalismo neoliberal nos libertava dos horrores das distopias estatistas, então por que os problemas de saúde mental dispararam nos últimos anos? E se olhássemos além de nossa obsessão por nós mesmos, por um minuto, e reenfatizássemos nossa sociabilidade? E se você fizesse um protesto e todos viessem? Essas foram as questões líricas e elementares que o Realismo capitalista colocou, e elas destacam por que lê-lo foi uma experiência tão emocional e transformadora para tantas pessoas.

Talvez porque a personalidade e os argumentos filosóficos de Mark dependessem de uma espécie de abnegação radical, sua vida profissional foi mais difícil do que deveria ser, apesar de suas consideráveis ​​proezas intelectuais e realizações. Surpreendentemente, ele só conseguiu um posto acadêmico permanente nos últimos anos. Mark Fisher serviu como o laureado da precariedade, à medida que ela passou a ser um conceito crítico significativo.

Com frequência ele lamentava o grande volume de burocracia imposto pelo trabalho acadêmico, além de ter sido vítima da cultura do cancelamento que tinha paralisado o discurso de esquerda nos últimos dois anos. Ele abandonou o Twitter na esteira da polêmica provocada por “Exiting the Vampire Castle”, depois de ser bombardeado com acusações ridículas de misoginia e chauvinismo. No entanto, embora o grande détournement de Mark fosse restabelecer uma estrutura sociopolítica para compreender a doença mental, é evidente, a partir dos fatos disponíveis, que as pressões sociais, embora exacerbassem sua depressão, não eram a única causa.

Em nossa reflexão sobre o legado de Mark, devemos prestar muita atenção à sua insistência, em “Exiting the Vampire Castle”, sobre o fato de que devemos sempre operar “em uma atmosfera de camaradagem e solidariedade”. Após a esquerda organizada ter chegado ao seu ponto máximo de adversidade durante os anos Bush-Blair, o trabalho de Mark representou, mais do que qualquer outro, um salto de fé extremamente necessário para longe do individualismo capitalista e em direção à práxis comunitária. Em seu cerne, exigia um espírito de equipe sólido como uma rocha. Mark praticou esse credo em sua vida e em sua obra, e seguir seu exemplo é uma forma de prestar-lhe um modesto tributo.

Alex Niven


Alex Niven é um escritor, editor e conferencista em Inglês na Newcastle University. Entre seus livros, incluem-se Folk Opposition, Definitely Maybe 33 1/3 e New Model Island.

Tradução: Leonardo Mendonça
Revisão: Maria Betânia F. Champagne

Original: https://tribunemag.co.uk/2021/01/our-debt-to-mark-fisher/

References
1 NT: o estranho-familiar, ou inquietante estranheza, conceito freudiano.
2 NT: Levantes de operários ingleses no século XIX.
3 NT: Rondologia é uma das traduções possíveis para hauntology, este termo por sua vez tradução inglesa de hantologie, conceito de Jacques Derrida utilizado e modificado por Fisher. Outras traduções possíveis são espectrologia e assombrologia

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